Categorias
Especial Reportagem

Calciopoli: do caos ao Tetra

É comum brincarmos, a cada lance suspeito de erro de arbitragem ou na falha de um goleiro no futebol italiano, que alguém ganhou muito dinheiro. A fama do calcio não é muito boa quando o assunto é manipulação. Todo ano podemos conferir nas tabelas de classificação de diversas divisões inúmeros asteriscos, indicando punições que, invariavelmente, estão ligadas ao acerto de resultados.

Em maio de 2006, por meio de escutas telefônicas, a polícia italiana descobriu que dirigentes de clubes e do comitê de arbitragem do país tinham acordos extraoficiais. Através de pressão e influência, decidiam escalas de arbitragens, coagiam árbitros e escolhiam o melhor resultado. O principal envolvido no escândalo seria Luciano Moggi, diretor-geral da Juventus, que havia acabado de ser campeã nacional com 91 pontos e apenas uma derrota nas 38 rodadas.

Nas mais de 30 mil interceptações telefônicas, além de Moggi, Adriano Galliani, administrador-delegado do Milan, Diego e Andrea de la Valle, patronos da Fiorentina, Claudio Lotito, presidente da Lazio, e Pasquale Fotti, presidente do Reggina, foram os principais dirigentes ligados ao caso, que ficou conhecido como Calciopoli ou Calciocaos. Muitos consideram o Calciopoli como o principal fator do declínio da Serie A, que deixou de ser o principal campeonato do mundo, ficando atrás dos campeonatos inglês e espanhol, e até mesmo do alemão.

Curiosamente, assim como em 82 e o caso Totonero, a Azzurra sagrou-se campeã mundial logo após a descoberta de um caso de manipulação de resultados. E apenas cinco dias após o capitão Fabio Cannavaro levantar a taça do Mundial, foi decretado o rebaixamento da Juventus, e a punição em pontos dada para as equipes da Lazio, do Milan, da Fiorentina e do Reggina. Além disso, os títulos das temporadas 2004/2005 e 2005/2006 da Juventus foram revogados pela justiça. Ainda assim ,as penas foram consideradas brandas, já que se esperava que o primeiro fosse rebaixado à série C, e os demais rebaixados à série B do futebol italiano. O Milan, por exemplo, poderia ficar fora da Liga dos Campeões do ano seguinte, da qual acabou campeã.

Prontamente, o elenco do alvinegro de Turim sofreu um desmanche. Gianluca Zambrotta, Lilian Thuram, Fabio Cannavaro, Patrick Vieira, Émerson e Zlatan Ibrahimovic deixaram o clube. Da constelação que formava aquela equipe, restaram apenas Gianluigi Buffon, Mauro Camoranesi, Pavel Nedved, Alessandro Del Piero e David Trezeguet. No ano seguinte, a Juventus seria campeã da Serie B, e depois de alguns anos de dificuldade, retomaria o domínio do futebol italiano.

Nos anos seguintes ao Calciopoli, a Internazionale, que não levava o Scudetto desde 1989, acabou sendo beneficiada com os desdobramentos do escândalo, já que conquistou o tricampeonato italiano e ainda alcançou o título da Liga dos Campeões da temporada 2009/2010. Ainda herdou o troféu da temporada 2005/2006 (o título de 2004/2005 ficou sob júdice). Curiosamente, o clube nerazzurro foi citado em processos posteriores, como na declaração do auxiliar Rosário Copolla, que em depoimento à justiça acusou o clube de pressioná-lo a mudar sua versão dos fatos em um julgamento disciplinar do lateral Iván Córdoba. Segundo Copolla, após manter o depoimento inalterado, ele nunca mais foi escalado para jogos da Serie A. Christian Vieri, lendário atacante italiano, é outro que sinalizou a participação da Inter. Para o ex-jogador, Massimo Moratti, presidente do clube, criou o escândalo para prejudicar a Juve. Vieri processou o dirigente e a Italia Telecom, por ter sido vítima de escutas telefônicas ilegais.

Três anos depois de deflagrado o caso, o tenente-coronel Attilio Auricchio, responsável pela investigação em que se baseia o processo, declarou que não haviam telefonemas entre os máximos dirigentes das equipes e os designadores de árbitros. Em 4 de março de 2010, o jornal La Stampa reproduziu três diálogos das 171 mil gravações (número revelado posteriormente), e que envolviam além dos milaneses Adriano Galliani e Leonardo Meani, o falecido Giacinto Fachetti, ex-presidente da Inter, com Paolo Bergamo, um dos chefes de arbitragem do calcio. Em outras interceptações reveladas, novos nomes apareceram, como o de Massimo Moratti, de Massimo Cellino (presidente do Cagliari), e até mesmo do árbitro Pierluigi Collina. Essas gravações foram utilizadas pela defesa de Moggi.

Voltando ao caso principal, a Promotoria buscou a prisão dos envolvidos. Porém, sabemos como a justiça costuma funcionar em casos como esse. A lentidão no processo e os entraves burocráticos eram tudo que os réus queriam. Além disso, as provas da acusação não eram consistentes. Em março de 2015, o Supremo Tribunal italiano anulou, por prescrição dos delitos, as condenações dos dirigentes Luciano Moggi e Antonio Giraudo, da Juventus, do ex-vice-presidente da Federação Italiana de Futebol, Innocenzo Mazzini, e do ex-responsável pelas nomeações de árbitros, Pieluigi Pairetto. Dos árbitros acusados, apenas Massimo de Santis (o mais famoso), recebeu alguma punição da justiça. O que inclusive levou Moggi a dizer: “As provas não existiam, [eles] estavam errados. Quem é que fazia parte do sistema se todos os árbitros foram absolvidos?”.

Em 2012, outro caso de grandes proporções foi deflagrado, o Calcio Scommesse, no qual jogadores e técnicos foram detidos para dar maiores explicações. Stefano Mauri, capitão da Lazio era um dos mais conhecidos, e até mesmo Gianluigi Buffon, capitão da Nazionale, foi investigado por ter realizado apostas. O lateral Domenico Criscito foi cortado da Eurocopa para poder ajudar nas investigações. Até mesmo o técnico da Juventus na época, Antônio Conte, foi interrogado por um episódio quando treinava a equipe do Siena, e posteriormente foi suspenso por 4 meses. No final das contas, a Operação Last Bet, como também ficou conhecida, acabou sendo mais efetiva do que a do Calciopoli. Dezenas de clubes sofreram sanções em pontos, rebaixamentos e multas, e dezenas de jogadores foram punidos com suspensão e banimentos, como a dos jogadores Cristiano Doni, da Atalanta, Giuseppe Signori, já aposentado e Tomas Locatelli, então no Arezzo.

Em abril de 2015, a Juventus entrou com uma ação cível contra a FIGC (Federazione Italiana Giuoco Calcio), pedindo uma indenização de 443 milhões de euros, por acreditar que as sanções impostas ao clube não tenham sido justas. Além da indenização financeira, a Juve ainda pleiteia a recuperação dos títulos cassados no tribunal. O pedido foi rejeitado.

No final das contas, se de um lado temos as conspirações contra a Juventus, historicamente ligada à família Agnelli, constantemente acusada de, digamos, dar uma forcinha aos árbitros, do outro temos conspirações contra a Internazionale, principal beneficiada com o escândalo, e com dirigentes ligados à TIM e à Gazzetta dello Sport, partes essenciais na descoberta e divulgação do caso. Entre tantos culpados, dificil é cravar quem foi inocente.

Deixe um comentário