A Ditadura Chilena durou 17 anos, de 11 de setembro de 1973, quando sob o comando de Augusto Pinochet, as Forças Armadas atacaram o Palácio de La Moneda e assassinaram cruelmente o presidente democraticamente eleito Salvador Allende, até o dia 11 de março de 1990. Os números registram pelo menos cerca de 28 mil presos políticos e torturados, duas mil pessoas assassinadas e mais de mil desaparecidos durante o período que o Chile ficou nas mãos de Pinochet.
E assim como em diversas ditaduras ou regimes fechados, o governo usou e abusou do esporte, em especial do futebol. No momento do golpe de estado, a seleção chilena disputava as Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1974. Em seu grupo, após a desistência da Venezuela, o Chile enfrentou o Peru, e depois de dois resultados iguais, foi necessário um jogo-desempate em Montevidéu, vencido pelos chilenos. Com isso, a equipe ganhou o direito de disputar a repescagem contra uma equipe europeia: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Após o golpe, os voos foram suspensos no país. O primeiro a decolar após o 11 de setembro chileno foi o avião da delegação da seleção nacional, com destino a Moscou. A URSS, que com Allende era um parceiro, a partir dali já mudava as relações com o país sul-americano. No dia 26 de setembro, Chile e URSS empataram em 0 a 0. Porém, o jogo da volta, marcado para 21 de setembro, não aconteceu.
O jogo da vergonha
O Estadio Nacional, em Santiago, foi prontamente acionado pelas Forças Armadas ao término do golpe. Seria o local perfeito para prender e julgar o mais rápido possível quem eles quisessem declarar como inimigos do país. Apenas nos primeiros dias, estima-se que mais de 7 mil pessoas tenha passado pelo estádio, entre presos, torturados e fuzilados, entre eles o jogador da Seleção do Chile na Copa de 1962, Hugo Lepe, salvo graças a outros companheiros do futebol.
Para o jogo das Eliminatórias, a URSS se recusou a viajar, e acusou o governo chileno de utilizar as instalações do estádio como um campo de tortura. Oficialmente, a FIFA realizou uma inspeção no local de jogo, liderada pelo brasileiro Abílio D’Almeida, conhecido anticomunista e vice-presidente da entidade. Há relatos de que a comitiva fez vista grossa e liberou o estádio, mesmo havendo prisioneiros no local no momento da “partida”. Sem adversário, os jogadores chilenos tiveram que praticar uma melancólica cena. Constrangidos, tocavam a bola um para o outro como se nenhum deles quisessem marcar o gol, que ficou a cargo de Francisco Chamaco, que selou a classificação do Chile ao Mundial. Naquela equipe fardava também um dos maiores jogadores da história chilena, Carlos Caszely, um dos principais nomes de oposição ao regime.
No mesmo dia, o Santos enfrentou, dessa vez de verdade, a seleção chilena. Já sabendo de antemão da desistência soviética, o governo chileno tratou de buscar uma alternativa para não gerar revolta no público presente. O time brasileiro aplicou uma sonora goleada de 5 a 2. Um golpe não esperado pela alta cúpula do país.
O futebol de clubes
Em termos locais, os clubes de maior sucesso eram Unión Española (com uma torcida não muito grande, mas com excelente administração) e o já tradicional Colo-Colo. Ambos conseguiram, inclusive, chegar à final da Libertadores da América. O “Cacique”, meses antes do início da ditadura, e o Unión dois anos após, em 75. Os dois clubes enfrentaram e foram derrotados pelo argentino Independiente. Com o passar dos anos, os times com mecenas acabaram ganhando maior projeção, como o Palestino e o Everton, além do próprio Unión Española.
De acordo com Braian Quezada Jara, autor do livro “A discreción, un viaje al cora´zon del fútbol chileno bajo la dictadura militar”, apesar da preocupação constante de Pinochet com o futebol, o ditador usou o esporte de maneira mais discreta que outros regimes similares, como da vizinha Argentina, por exemplo. Uma das ações, feita não apenas com o futebol, foi a tentativa de massificação de modalidades, como o ciclismo e o tênis. Durante o período, foram criados diversos complexos esportivos no país.
Pinochet também alterou as estruturas do futebol chileno com forte injeção de dinheiro a partir do Polla Gol, a loteria esportiva controlada pelo Estado. A partir daí, os dirigentes amadores, que tiravam dinheiro do próprio bolso, passaram a ter controle de uma quantia de dinheiro considerável. Também por isso, os dirigentes dos principais clubes do país, especialmente Colo-Colo e as universidades, Católica e de Chile, permitiram a entrada de diversos militares em postos diretivos, e sem pudor nenhum, ou talvez por medo, apoiaram a eleição do general Eduardo Gordon Cañas presidência da ACF, então órgão máximo do futebol andino. No Colo-Colo, por exemplo, Pinochet se tornou presidente de honra e foi fundamental na construção do novo estádio do clube. Vale ressaltar também a intromissão do regime no processo eleitoral do Colo-Colo, que obviamente, era prejudicial. Apesar disso, e dos boatos, Pinochet era torcedor do Santiago Wanderers de Valparaíso.
Torcedores de La U insistem em dizer que as duas décadas e meia sem conquistas teria muito a ver com esse apoio ao arquirrival, mas Rolando Molina, presidente azulino na época, era conhecido por ter acesso irrestrito aos mais altos escalões do governo. Ambrosio Rodriguez, seu sucessor, era Procurador Geral da República. Ou seja, a ditadura tinha amplo domínio de todo o futebol nacional, e não apenas de alguns clubes.
Tal qual o regime militar brasileiro, o chileno também se destacou por incentivar a criação de novos clubes, principalmente na região norte. O exemplo mais destacado é o do Cobreloa, de Calama, fundado em 1977, e que foi campeão chileno logo em 1980 e vice-campeão continental em 81. Com o passar dos anos, se tornou a quarta força do futebol nacional, mas atualmente milita na segunda divisão – muito em razão de crises do setor mineral. A ditadura chilena teve ainda outros episódios de interferência direta, como no caso de adulteração de idade de diversos jogadores da seleção sub-20, por exemplo, mas que não caberiam em um único artigo. Como em qualqier regime opressor, fica difícil enumerar os males.
Curiosamente, o futebol chileno viu sua maior glória após a retirada de Pinochet. O Colo-Colo, time mais popular do país, conquistou a Copa Libertadores da América em 1991, ainda que torcedores de La U digam que que isso tenha sido consequência dos anos de ajuda dos militares.
Hoje em dia, embora revisionistas tentem contemporizar torturas, assassinatos e desaparecimentos em nome da ordem, o próprio futebol trata de responder. No Estádio Nacional está lá, gravado na porta de entrada nº 8: “Un pueblo sin memória, es un pueblo sin futuro”.
Texto publicado originalmente na Revista Série Z nº 3 (Abr e Mai/2016).