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De Manaus a Auxerre: a história de Amadeu Teixeira e Guy Roux

Duas histórias de longevidade aproximam a capital do estado do Amazonas a Auxerre, uma pequena cidade de cerca de 40 mil habitantes encravada na região central da França. Mas só uma delas é reconhecida mundo afora. Na cidade francesa, Guy Roux marcou seu nome e é tido por muitos como o mais longevo técnico de um mesmo clube. O ex-jogador mediano transformou o Auxerre em um dos clubes mais destacados do país e comandou a equipe por 44 anos (1961-2005) – com algumas interrupções, diga-se. Mas o verdadeiro dono do recorde de treinador mais longevo é Amadeu Teixeira, fundador do América Futebol Clube do Amazonas e comandante do time alvirrubro por 53 anos (1955-2008). Embora a história de ambos jamais tenha se cruzado, contamos a trajetória destes dois ícones do futebol em um único texto.

A origem

Amadeu Teixeira nasceu em 30 de junho de 1926. Guy Roux nasceu em 18 de outubro de 1938, em Colmar. Quando Roux estava nascendo, Amadeu estava prestes a dar início em sua história no futebol. Aos 13 anos, em 1939, foi um dos fundadores do América, que se tornou um dos mais tradicionais clubes manauaras, claramente inspirado no America carioca. Sem talento para jogar, Amadeu participava dos trabalhos fora dos gramados e viu o clube conquistar o tetracampeonato amazonense entre 51 e 54. Em 1955, assumiu como treinador. Nessa mesma época, Guy Roux militava como meio campista em times como o próprio Auxerre, Staide Poitevin e Limoges. Em 1961, ele retorna ao Auxerre e apresenta um planejamento para que o clube possa crescer. Apesar da resistência dos dirigentes, Roux acaba contratado como treinador com apenas 22 anos.

A personalidade

Ambos os personagens deste texto tinham similaridades na visão que tinham do mundo, e tratavam os clubes que defendiam como extensões de suas próprias vidas. Funcionário público da prefeitura, Amadeu tirava dinheiro do próprio bolso para manter o clube, que tinha na casa de seu treinador sua “sede administrativa”. Amadeu Teixeira era religioso, mas abria mão da fé quando o assunto era o América e pelo clube faltou diversas vezes nas missas da catedral de Nossa Senhora da Conceição, mas era perdoado pelo padre local. “Ele sabe que eu, mesmo sendo da Irmandade do Santíssimo Sacramento, às vezes falto às missas dominicais por ter duas religiões: a católica e o América”. Amadeu também tentou implantar o futebol feminino no fim da década de 60, criando dois quadros. A experiência não durou muito, já que o futebol para mulheres era proibido por lei nesta época.

Guy Roux tinha um senso de liderança incomum, que o fez ter facilidade para se tornar treinador mesmo com a pouca idade. Era paternalista e se preocupava com seus colegas de profissão, sendo presidente da associação de treinadores de futebol franceses entre 1977 e 2001.

Os contrastes

Apesar dos longos anos à frente do América, Amadeu nunca conseguiu levar o time a voos mais altos. O treinador-torcedor tinha um árduo trabalho, afinal, quase sempre tocou tudo de maneira solitária, inclusive as categorias de base, sendo um dos principais formadores do estado. Guy Roux também se notabilizou pela formação no Auxerre, lançando nomes importantes do futebol francês, como Eric Cantona e Djibiril Cissé. Porém, Roux conseguiu transformar o Auxerre de um clube inofensivo em um dos mais competitivos.

Não foi fácil a missão de Roux. Foram quase dez anos de trabalho para que conseguisse conquistar o primeiro título e o consequente acesso para a terceira divisão nacional, em 1969-70. Em 73-74, subiu para a segunda divisão, e em 1979, atingiu o ápice até aquele momento chegando à final da Copa da França, caindo diante do Nantes, até então uma das equipes mais respeitadas do país.

Na temporada seguinte, conquistou o acesso inédito à elite – de onde só saiu em 2012. Nos anos 80, Guy liderou a equipe em campanhas destacadas e conduziu os investimentos na base, que fez o clube se transformar no maior campeão da Copa Gambardella, uma espécie de Copa SP de Juniores da França.

O auge

Amadeu Teixeira assumiu o América um ano após o clube ter encerrado uma sequência de quatro títulos estaduais. E passou 38 anos sem conseguir levar a equipe ao título novamente. A espera acabou em 1994. Em um campeonato marcado pelo “abandono do profissionalismo”, o Diabo precisou de apenas oito jogos (com 3 vitorias e 3 empates) para levantar o caneco ao vencer o gigante Nacional em uma disputa de pênaltis.

Foi também a partir de 94 que o trabalho de Roux alcançou um novo patamar. Primeiramente com a conquista da Copa da França, troféu que voltaria a conquistar outras três vezes (96, 2003 e 2005). Além disso, na temporada 95-96, levou o clube a um inédito título da Ligue 1, com um elenco que contava com Laurent Blanc em seu quadro. Na temporada seguinte, na primeira e única participação do Auxerre na Liga dos Campeões, o clube chegou até as quartas-de-final da Liga dos Campeões, caindo para o Borussia Dortmund, que viria a ser o campeão daquela edição. O Auxerre já havia tido outras boas campanhas em torneios europeus, chegando nas quartas da Recopa Europeia, em 95, e alcançando as semifinais da Copa da UEFA, em 93.

O fim

Amadeu se aposentou do futebol apenas em 2008 e assumiu de vez a presidência do clube. No ano seguinte, recebendo alguns investimentos, o América reconquistou o Campeonato Amazonense, de maneira surpreendente. Em 2010, Amadeu deixou o clube e nomeou sua filha, Bruna Parente, ao cargo. Depois de um curto período em que o clube mudou de nome, o América foi rebatizado com seu nome original e realizou a melhor campanha de um clube amazonense na história da Série D do Campeonato Brasileiro, terminando com o vice-campeonato, que daria o acesso para a Série C. Mas o clube acabou punido pela escalação irregular de um atleta. O clube encontra-se licenciado desde 2012. Já Guy Roux deixou o Auxerre em 2005, após conquistar sua quarta Copa da França. É o recordista de jogos na Ligue 1, com 894 jogos. Em 2007, retornou ao futebol para seu único trabalho como técnico em outro clube, assumindo o Lens. Quatro jogos depois, sem vitórias, e Roux anunciou nova aposentadoria, desta vez definitiva.

Para Amadeu, a história de vida acabou no dia 7 de novembro de 2017, aos 91 anos. Após três meses internado depois de um acidente doméstico, o maior ícone do esporte amazonense faleceu vítima de falência múltipla dos órgãos. Já o francês aproveita a aposentadoria e aparece apenas quando é consultado pela imprensa sobre algum assunto. Em 2016, durante a Eurocopa disputada na França, entrou em polêmica ao dizer que o português Renato Sanches, de apenas 18 anos, tinha, na verdade, 23 anos. Nada que o fizesse perder o status de lenda que tem no país e na história do futebol francês.


Texto publicado originalmente no dia 19 de dezembro de 2017 no blog Escrevendo Futebol.

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