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Justin Fashanu, um símbolo controverso da luta LGBT no futebol

Dia 26 de junho de 2015 é um dia em que a comunidade LGBT deu um passo enorme em busca da igualdade de direitos. A Suprema Corte dos Estados Unidos definiu que o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo seja garantido pela Constituição do país. Na mesma hora, milhões de pessoas expressaram apoio pelas redes sociais inserindo as cores do arco-íris em suas fotos de perfil. Ainda assim, apesar do grande avanço dado pelo país mais influente do planeta, ainda há, na maior parte do mundo, uma cultura de discriminação. E Justin Fashanu, é um mártir desta causa.

Filho de um advogado nigeriano e uma enfermeira guianense, Justinus Soni Fashanu nasceu em 19 de fevereiro de 1961, em Hackney, uma das regiões mais afetadas pela criminalidade na Grande Londres. Sem uma estrutura familiar estável, Justin e seu irmão, John, foram enviados a um orfanato. Logo foram adotados pelo casal Alf e Betty Jackson. Criados na região de Shropham, ambos os garotos praticavam esportes regularmente. Justin, além do futebol, também era boxeador. Porém, graças a insistência de um scout do Norwich, Justin seguiu carreira no futebol como atacante. Estreou como profissional em dezembro de 78. Era alto (1,85), forte e tinha um bom controle de bola, características fundamentais para um jogador de sua posição naquele tempo. Teve um início de carreira promissor na equipe dos canários, e foi convocado algumas vezes para a seleção sub-21 da Inglaterra.

Em 80, venceu o prêmio BBC Goal of the Season, por um golaço diante do então poderoso Liverpool. Após uma intensa troca de passes, a bola chega em Fashanu, que levanta a bola de costas para o gol, e arremata de esquerda, encobrindo o goleiro.

O gol de Fashanu igualava o placar em 3 a 3 naquele momento. Juliet Jacques, jornalista e fanática torcedora do Norwich, descreveu o gol. “Um brilhante pedaço de jogo coletivo com uma finalização de tirar o fôlego. Com a imprudência da juventude, levantou a bola com o pé direito, e deu um voleio em direção ao curto espaço entre a trave e a cabeça de Roy Clemence. O Norwich acabou perdendo por 5 a 3, mas aquele gol ofuscou o resultado”.

Suas regulares atuações logo chamaram a atenção do bicampeão europeu Brian Clough, treinador do Nottingham Forest. Justin foi o primeiro jogador negro na Inglaterra a ser transferido de uma equipe para a outra numa transação num valor superior a £1 milhão de libras. Um fato histórico para os jogadores de futebol negros na Grã-Bretanha, que invariavelmente, sofriam com vaias, cascas de bananas jogadas em campo e imitações de macacos.

Mas rapidamente, a vida pessoal de Fashanu passou a interferir em seu desempenho em campo. Rumores de constantes idas a bares e boates voltadas ao público gay pareciam incomodar o mítico treinador, e a relação entre os dois passou a estremecer. Clough chegou a obrigar Justin a treinar em separado do restante dos jogadores. Em sua autobiografia, Clough afirmou que o “gol da temporada” o fez perder 1 milhão de libras. E revelou o seguinte diálogo com Justin:

– Aonde você vai quando quer comprar pão?
– A uma padaria.
– E quando quer comprar um pernil?
– A um açougue?
– Então porque você continua indo a esses clubes de bichas?!

Em agosto de 82, apenas um ano após sua contratação, foi emprestado ao Southampton, marcando 3 vezes em 9 partidas. O então manager dos Saints, Lawrie McMenemy desejava permanecer com Fashanu em seu elenco, mas a falta de dinheiro impediu a negociação. Fora dos planos de Clough, foi negociado com o rival local Notts County por £150 mil, um valor quase 7 vezes menor do que o que foi gasto pelo Forest. Mais uma vez conseguiu demonstrar bom futebol, mas sofreu uma grave lesão no joelho. Em junho de 85, foi contratado pelo Brighton Hove & Albion, que ao invés de ser o local que o colocaria de novo no topo, o fez prejudicar ainda mais sua lesão.

Fashanu então se mudou para os Estados Unidos para realizar uma cirurgia no joelho e por lá ficou para tentar retomar sua carreira. Jogou pelo Los Angeles Heat e pelo canadense Edmonton Brickmen. Ele voltou ao Reino Unido em 89 para jogar no Manchester City, mas pouco menos de dois meses depois acertou com o West Ham, e a partir daí se transformou num verdadeiro cigano da bola.

Em 22 de outubro de 90, em entrevista ao The Sun, um dos principais tabloides ingleses, Fashanu resolveu tomar uma decisão inédita. Assumir sua homossexualidade frente ao público. “Estrela do futebol de 1 milhão de libras: Eu sou gay!”. Era tudo o que os jornais queriam ouvir!

Em julho de 91, em entrevista à revista Gay Times, Justin afirmou que criou histórias em cima de políticos, estrelas do futebol e artistas sem nome ao The Sun, e que recebeu uma quantia razoável de dinheiro por isso. Mas que recebeu ofertas ainda maiores para “se manter no armário”. Além disso, disse que sofreu grandes danos em sua profissão, afinal, desde a entrevista ao The Sun, não havia acertado nenhum contrato.

Como era de se esperar, a revelação causou reações. John, o irmão de Justin, que também era jogador, foi entrevistado pelo The Voice, uma revista semanal dedicada à comunidade negra, e declarou: “Meu irmão gay é um pária. (A declaração ao The Sun) foi uma afronta para a comunidade negra. Danoso, patético e imperdoável”. Aliás, seu irmão John é um capítulo à parte. Enquanto Justin provou da decadência, John seguiu em ascensão. Era o camisa 9 da Crazy Gang do Wimbledon FC, campeão histórico da FA Cup de 1988. e após o fim de sua carreira como jogador, se tornou um apresentador de TV de relativo sucesso.

Retomando, a vida de Justin já estava longe de ser calma, e se tornou turbulenta até seus últimos dias de vida. Após sua saída do West Ham, em 90, até sua última partida, em 97, passou pelas equipes do Leyton Orient, Hamilton Steelers-EUA, Southall-ING, Toronto Blizzard-EUA, Leatherhead-ING, Newcastle, Torquay-ING, Airdrieonians-ESC, Trelleborg-SUE, Heart of Midlothian-ESC, Atlanta Ruckus-EUA e Miramar Rangers-NZL. Presença constante nos tablóides, Justin passou a ter um relacionamento com a atriz Julie Goodyear, 19 anos mais velha que o jogador, que durou muito pouco, e que se mostrou posteriormente ser apenas de fachada. Em 94, notícias o ligavam até mesmo a Stephen Milligan, deputado conservador encontrado morto por asfixia erótica vestido em uma lingerie. Na Suécia, teve seu contrato rescindido por conduta anti-profissional, por ter tentado vender falsas histórias à imprensa, fato que não era inédito. O próprio Justin já havia assumido vender histórias a jornais sensacionalistas. Após o fim de sua carreira, estava prestes a trabalhar como treinador da equipe de Maryland Mania.

Em março de 98, um garoto de 17 anos afirmou à polícia ter sido abusado sexualmente após uma noite regada a álcool. Na época, em Maryland, atos homossexuais não eram permitidos, além da alegação de que não havia existido consenso do jovem. Fashanu foi ouvido pela polícia no dia 3 de abril, mas não foi mantido sob custódia. Posteriormente, com um mandado de prisão, a polícia chegou ao apartamento de Fashanu, mas ele já havia partido de volta para a Inglaterra.

Na manhã do dia 3 de maio de 1998, Justin foi encontrado enforcado em uma garagem. Ele arrombou o local, e deu fim à sua própria vida com um fio de luz, aos 37 anos. Em sua carta de despedida, negou as acusações de abuso e afirmou que o sexo foi consensual (assumindo que realmente havia se relacionado com o rapaz), alegando que fugiu dos Estados Unidos por considerar que não receberia um julgamento justo por ser homossexual. E acrescentou: “percebi que já havia sido julgado. Não queria dar mais constrangimento a meus amigos e familiares”. Enquanto isso, o processo ia sendo arquivado por falta de provas conclusivas, apesar dos indícios apurados pela polícia local.

Dois anos depois do suicídio, John Fashanu contou em um programa de TV inglês que recebeu uma ligação do irmão. “Um dia antes de Justin ter cometido suicídio, recebi uma ligação no meu celular e a pessoa não falava. Eu conseguia ouvir a respiração, eu conseguia saber que era alguém da minha família. Eu conseguia sentir que era ele. Eu apenas coloquei o telefone no gancho e pensei: ‘É ele outra vez'”. Em 2012, John disse em entrevista que Justin não era gay e apenas buscava atenção. “Eu não sou homofóbico e nunca fui, mas naquela época, eu certamente errei com meu irmão. Passo as noites me perguntando se poderia ter feito mais e a resposta é: sim, poderia ter feito mais. Isso me consola? Não. Nós choramos por quase duas décadas pelo Justin, isso é suficiente”.

A atitude de se assumir gay, que ainda hoje causa espanto no mundo do futebol, é visto pela comunidade LGBT como um grande legado, apesar de todas as controvérsias da vida de Justin. Na Inglaterra, foi criado a Justin Campaign, uma organização que luta contra a homofobia no futebol e promove a inclusão de jogadores de futebol abertamente homossexuais. Ainda na carta de despedida, acusou a suposta vítima de chantagem. “Eu quero dizer que eu não abusei sexualmente do garoto. Ele transou comigo e no dia seguinte pediu dinheiro. Quando eu disse ‘não’, ele disse ‘você espera pra ver’. Cristão, encerrou com a seguinte frase. “Eu espero que o Jesus que amo me receba em casa”.


Texto postado originalmente no dia 29 de junho de 2015, no blog Escrevendo Futebol.

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