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Reportagem

Arkan, o sanguinário Tigre Sérvio

Zeljko Raznatovic, mais conhecido pelo apelido de Arkan, é uma das mais controversas personagens da história da Sérvia. Tão controverso, que não é sérvio de nascimento, tendo vindo ao mundo em Brezice, na Eslovênia, no dia 17 de abril de 1952. Filho de Veljko Raznatovic, importante combatente da força aérea iugoslava durante a Segunda Guerra Mundial, o ambiente familiar não era dos melhores, já que o garoto e suas três irmãs eram constantemente espancados pelo chefe da casa. Mesmo assim, Zeljko chegou a sonhar com a mesma carreira do pai.

Entretanto, o caminho do jovem esloveno mudou drasticamente. Em 66, foi preso pela primeira vez por cometer pequenos roubos contra mulheres, o que lhe custou um ano em um reformatório. Após esse período, fugiu para Paris. Aos 15 anos, com um histórico de violência familiar, seu futuro fatalmente seria o da criminalidade. Na cidade-luz, passou a cometer diversos assaltos, e em 69, foi preso e mandado de volta para seu país, onde foi condenado a três anos de prisão.

Na cadeia, Zeljko passou a exercer sua liderança nata, organizando uma pequena gangue. Bem relacionado graças ao pai, era ajudado sempre que se metia em confusão por Stane Dolanc, político esloveno e Ministro do Interior, com forte ligação com o presidente iugoslavo Josip Tito. Em 72, aos 20 anos, se mudou para a Europa Ocidental, onde conheceu grandes criminosos sérvios. Todos, assim como ele, eventualmente contratados pelo serviço secreto para, digamos, algumas “missões especiais”. Para isso, era preciso sempre ter um passaporte falsificado em mãos. E foi de um deles que o apelido Arkan acabou pegando.

Entre 72 e 83, foi preso na Bélgica, na Holanda, na Alemanha e na Suíça, mas sempre se livrou do cárcere em fugas cinematográficas. Além destes quatro países, cometeu diversos crimes na Suécia, na Áustria e na Itália. Em uma de suas fugas, adentrou um tribunal com duas pistolas, e pulou por uma janela junto de um companheiro que estava sendo julgado. Em 83, voltou a Belgrado e se tornou um homem de negócios. Negócios do crime, obviamente. No final daquele ano, um assalto a banco foi cometido em Zagreb, e uma rosa foi deixada no balcão. Assinatura típica de Arkan em outros roubos. Procurado por policiais, reagiu a tiros e foi novamente detido. Entretanto, foi liberado após explicações. Efeitos de sua antiga ligação com Dolanc, que disse certa vez que “um Arkan vale mais que toda a polícia secreta iugoslava”.

Arkan seguiu em sua vida de crimes e prisões. Enquanto isso, a Iugoslávia, já sem o líder Tito, morto em 1980, iniciava seu declínio, que culminaria na Guerra Civil da Iugoslávia, onde o futebol, e principalmente a figura de Arkan, teriam papel fundamental.

Adepto do futebol, Arkan passou a frequentar o estádio Marakana, onde o Estrela Vermelha, principal equipe do país manda seus jogos. Rapidamente, com seu carisma e ambição, e orientado pelo governo de Milosevic, se tornou líder da Delije, a torcida organizada do clube sérvio. Em 1990, logo após as eleições na Croácia (a primeira em mais de 50 anos de domínio sérvio), Arkan foi um dos protagonistas de uma das maiores batalhas campais da história. No dia 13 de maio, o Dínamo de Zagreb recebeu o Estrela Vermelha  no estádio Maksimir para mais uma partida repleta de tensão entre as partes. Rapidamente, a Delije iniciou os conflitos. Naturalmente, os Bad Blue Boys, a torcida da equipe croata, reagiu. A polícia, majoritariamente sérvia, tomou posição junto dos torcedores do Estrela Vermelha. E a violência tomou conta do gramado.

O fato mais marcante daquela data, entretanto, veio de um personagem inesperado. Zvonimir Boban, então camisa 10 e capitão do Dínamo Zagreb (e futura estrela do futebol mundial), se revoltou contra a brutalidade de um dos policiais e o atacou. O ato heróico, entretanto, lhe rendeu 6 meses de suspensão e acusações criminais, que acabaram arquivadas.

Em outubro daquele mesmo ano, Arkan resolveu ir além, e recrutou torcedores do Delije e outros amigos próximos para formar a Guarda Voluntária Sérvia, que posteriormente seria intitulada como os “Tigres de Arkan”. Era a institucionalização da violência do futebol. A Guarda se juntou a militantes da República Sérvia de Krajina, grupo de oposição do governo croata recém-estabelecido e apoiados pelo governo central iugoslavo. Porém, Arkan foi detido em novembro pelas forças croatas. Mas Arkan nunca ficou numa cadeia por muito tempo, e logo foi libertado em condições não esclarecidas. Acredita-se que Croácia e Iugoslávia entraram em um acordo pela libertação do paramilitar e seu grupo.

A Guarda Voluntária possuía cerca de 500 membros, entre eles criminosos de diversas outras nações europeias, e atuaram de 1991 a 1995 em conflitos contra grupos paramilitares croatas e bósnios. Extremamente cruéis, os Tigres não mediam esforços por seus ideais nacionalistas. Arkan e seus homens matavam, torturavam e estupravam quem achassem necessário. Com sua liderança, conquistava a lealdade de seus oficiais, dando-lhes gratificações e honrarias. Com seu carisma, conquistou a simpatia de uma grande parcela da população sérvia. Mas nada disso seria possível sem o apoio irrestrito das autoridades locais. Forte politicamente, Arkan deu às lideranças iugoslavas tudo o que eles queriam, e recebeu em troca muitas vantagens econômicas. Assim, construiu um império após a guerra. Intocável, era imune a qualquer problema com a justiça. Dessa forma, passou a cuidar de inúmeros negócios em diversas áreas. E pôde cultivar uma de suas paixões: o futebol.

Apaixonado pelo Estrela Vermelha, tentou de todas as maneiras comandar o clube mais vitorioso da Sérvia. Sem sucesso, optou por comprar a pequena equipe do Obilic, em junho de 96. O nome do clube se refere a Milos Obilic, herói de guerra sérvio, que segundo conta a lenda, teria assassinado o sultão Murad I, em 1389, após vitória dos otomanos na Batalha de Kosovo. Com o dinheiro de Arkan, e seus métodos nada ortodoxos, o Obilic subiu para a primeira divisão em 96-97, e no ano seguinte, desbancou Partizan e Estrela Vermelha na elite do futebol na Iugoslávia. Ameaças a jogadores e árbitros eram constantemente relatadas. Nada que impedisse a ascensão do clube que passou a usar o amarelo como cor principal, em referência aos “Tigres”. O livro “Como o futebol explica o mundo”, de Franklin Foer, detalha a participação de Arkan e da Delije na Guerra da Iugoslávia e sua aventura no mundo do futebol.

Obilic campeão iugoslavo 97-98. De pé: Zoran Petrović, Nenad Lukić, Predrag Filipović, Kuzman Babeu, Darko Vargec, Miroslav Savić, Željko Ražnatović (Arkan), Dragan Šarac, Darko Nović, Živojin Juškić e Aco Vasiljević; Agachados: Saša Mrkić, Saša Kovačević, Saša Viciknez, Ivan Litera, Zoran Ranković, Nenad Grozdić, Saša Zorić, Marjan Živković e Goran Serafimović

Em entrevista ao Globoesporte.com, em 2014, o técnico da equipe na época, o bósnio Dragan Okuka, negou a influência externa de Arkan. “Todos tinham medo de Arkan, mas estas acusações não são verdadeiras. Nós vencemos o campeonato porque tínhamos um time muito lutador, com boa disciplina, graças a Arkan. Ele era rígido. Não deixava os jogadores fumarem e saírem até tarde. Ele era um bom presidente, dava boas condições de treino, de viagem. Todo mundo recebia em dia “

Na temporada 98-99, o Obilic derrotou o IBV da Islândia pela primeira fase preliminar da Liga dos Campeões. Na segunda fase eliminatória, a última antes da fase de grupos, sofreu uma dura goleada de 4 a 0 do Bayern na Alemanha, mas segurou um empate em 1 a 1 em Belgrado. Beckenbauer, então presidente do clube bávaro, se negou a acompanhar a partida na Sérvia. Na mesma temporada, foi eliminado na primeira fase da Copa da Uefa pelo Atlético de Madrid, com duas derrotas. O clube ainda contou com participações na Recopa Europeia, na Copa Intertoto e na Copa da Uefa de 2001-2002.

Na vida pessoal, Arkan teve nove filhos com cinco mulheres diferentes. Mas a mulher mais importante de sua vida certamente foi Ceca. Famosa cantora sérvia, foi colocada na presidência do clube quando a UEFA proibiu o Obilic de participar de competições europeias enquanto Arkan estivesse no comando.

Em 1997, o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia indiciou Arkan pelos crimes de guerra de genocídio contra a população bósnia-muçulmana, crimes contra a humanidade e violações da Convenção de Genebra. Isso só veio a público dois anos depois, durante a Guerra do Kosovo, em 99, após os bombardeios realizados pela OTAN em solo iugoslavo. Acredita-se que os Tigres de Arkan se mantiveram ativos durante este conflito.

Apesar da vida de crimes, a impunidade era um companheiro fiel de Arkan, que só veio a ser punido pelas mãos vingativas de um jovem policial. Na tarde de 15 de janeiro de 2000, no saguão do Intercontinental Hotel, em Belgrado, Dobrosav Gavric, de 23 anos e membro da polícia, se aproximou de Arkan, que conversava com outros dois colegas, e iniciou uma série de disparos de sua pistola CZ-99. Arkan foi atingido no olho esquerdo, enquanto seus companheiros, Milenko Mandic, um gerente de negócios e Dragan Garci, um inspetor de polícia, morreram no local. O guarda-costas de Arkan, Zvonko Mateovic disparou contra Gavric e o deixou desacordado. Mateovic e Ceca agiram rápido e tentaram levar Arkan ao hospital, em vão. Aos 47 anos, Zeljko Raznatovic encontrava aquilo que sempre desafiou. Tido como herói por muitos, o sepultamento de Arkan foi acompanhado por uma multidão. Seu túmulo, adornado por um suntuoso busto é até hoje local de peregrinação.

Gavric, e seus dois comparsas, Milan Djuricic e Dragan Nikolic, foram condenados a 30 anos de detenção cada um. Entretanto, apenas Nikolic ainda cumpre a pena. Mas o verdadeiro mandante do crime jamais foi descoberto. Rumores indicaram a participação de Marko Milosevic, filho de Slobodan Milosevic, de empresários ligados ao crime organizado, e até mesmo do serviço secreto americano.

Após a morte de Arkan, o Obilic entrou em declínio. Ceca foi presidente da equipe por um bom tempo, mas não conseguiu manter as glórias conquistadas por seu marido. Atualmente, o clube, que retomou o branco como cor principal, milita na 6ª divisão do futebol da Sérvia. Ceca chegou a ser presa por ficar com parte do dinheiro arrecadado em vendas de jogadores. Hoje, vive uma vida de luxo, e em algumas oportunidades, volta às arquibancadas com seus filhos. Mas para torcer para o Estrela Vermelha.

É interessante notar que Arkan e seus homens ficaram impunes. O Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia, citado anteriormente, reconheceu os crimes cometidos pelos paramilitares, mas não levou nenhum deles a julgamento. Desde então, muitos deles foram presos por outros crimes, como o assassinato do primeiro ministro sérvio Zoran Djindjic, em 2003, mas jamais por seus crimes na época em que lutaram submetidos a Arkan.

O poder de Arkan inspira e fascina a muitos até os dias de hoje. Por quê? Segundo o jornalista Filip Svarm, a explicação é simples. “Arkan era policial e chefe da máfia ao mesmo tempo. Era comandante paramilitar e dono de um clube de futebol. Estava no show business e na lista de procurados da Interpol”. Um homem acima da lei dos homens.


Texto publicado originalmente em 4 de setembro de 2015, no blog Escrevendo Futebol. 

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