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Suicídio no círculo central: a história de Abdón Porte

Na madrugada do dia 5 de março de 1918, o silêncio da noite foi quebrado por um estampido vindo do interior do estádio Gran Parque Central, em Montevidéu. Horas depois, Severino Castillo, o zelador do campo, acordou, tomou seu chimarrão para espantar o frio, e botou suas luvas antes de partir rumo ao gramado do Parque Central acompanhado de seu fiel cão. Andava de cabeça baixa quando avistou algo estranho. Seu coração já sentia a tragédia. Ao chegar ao meio de campo, encontrou o corpo de um homem que havia ajudado a mudar a história do Nacional e daquele estádio. Abdón Porte, capitão tricolor durante sete anos, havia se matado com um tiro no coração e caído no mesmo círculo central em que anos mais tarde seria dado o primeiro pontapé da história das Copas do Mundo. Era o fim de uma história de paixão e suor eternizada em uma das tribunas de honra da acanhada casa do Decano.

Voltamos então para 1893. Este foi o ano de nascimento de Porte, no departamento de Durazno. Em 1908, aos 15 anos, desembarcou na capital uruguaia. Em 1910, começou a jogar no pequeno Colón e depois passou pelo já extinto Libertad. Chegou ao Nacional em 1911, graças à democratização pela qual o clube passou, apoiada pelo presidente José Maria Delgado, que permitia o ingresso ao clube de pessoas de todas as classes. Fez sua estreia em 12 de março contra o Club Dublin. Era um centro-médio vigoroso, bom no jogo aéreo, do tipo que a América do Sul criaria aos montes com o passar dos anos. Pela garra, recebeu o apelido de El Indio. Foi capitão por inúmeras vezes e conquistou 19 títulos pelo Nacional: 4 campeonatos uruguaios, 5 Copas de Honra, 4 Copas Competencia, 1 Copa Aldao, 2 Copas Competencia Chevallier Boutell e 3 Copas de Honra Cousenier. Esteve na delegação uruguaia no título do Sul-Americano de 1917, a primeira edição da atual Copa América. Um de seus maiores orgulhos era jamais ter perdido para o CURCC (Central Uruguay Railway Cricket Club), grande rival da época.

Porte tinha uma visão parecida com a de muitos de nós. Sem futebol e sem seu clube do coração, não havia porque viver. “O dia em que eu não puder mais jogar futebol, me dou um tiro”, costumava dizer. Em 1917, depois de vencer a Copa Uruguaya de Propiedad, uma de suas maiores glórias, o futebol físico de Porte começou a cair de desempenho, sendo relegado aos poucos para a reserva de Alfredo Zibecchi, algo inaceitável para ele. No dia 4 de março, ajudou o Nacional a vencer o Charley por 3 a 1, e comemorou junto aos companheiros até a noite. Por volta de uma hora da madrugada, se despediu de todos dizendo que iria pegar o trem. Mudou de ideia. Afundado em depressão reforçada pela morte recente de seus dois irmãos, Bolívar e Carlos, vítimas de varíola, El Indio decidiu não mais fazer parte deste mundo. Caminhou até o círculo central, como se fosse dar a saída de jogo da vida. Com um único tiro no próprio peito, Porte, então com apenas 25 anos, entrou para a eternidade do Club Nacional, camisa que vestiu por 207 vezes. Dentro de um chapéu de palha, uma carta destinada ao presidente José Maria Delgado, responsável por sua chegada ao Bolso: “Querido Doctor José María Delgado. Le pido a usted y demás compañeros de Comisión que hagan por mí como yo hice por ustedes: hagan por mi familia y por mi querida madre. Adiós querido amigo de la vida”.

Logo abaixo da assinatura, versos que representavam toda a paixão e loucura de Porte

Nacional aunque en polvo convertido
y en polvo siempre amante.
No olvidaré un instante
lo mucho que te he querido.
Adiós para siempre

O bangue-bangue uruguaio

Um pouco menos de dois anos depois da trágica despedida de Porte, uma história ainda mais extraordinária aconteceu no mesmo trecho de campo do Gran Parque Central. Em 2 de abril de 1920, o jornalista, escritor e político Washington Beltrán Barbat, trava um duelo digno de Velho Oeste contra ninguém mais ninguém menos que um ex-presidente uruguaio, o também jornalista José Batlle y Ordoñez. O antigo mandatário máximo do país desafiou Beltrán por conta de um artigo escrito no dia anterior. Orgulhoso, o jornalista aceitou o desafio. Beltrán tinha 35 anos contra incríveis 63 do presidente, que se mostrou um exímio atirador, e assassinou o desafeto com um tiro na axila. Batlle y Ordoñez morreria dez anos depois, durante uma cirurgia em razão de um tromboembolismo pulmonar.


Texto publicado originalmente em 11 de março de 2015 no blog Escrevendo Futebol, e editado em 5 de julho de 2019.

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