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Jogos históricos

São Paulo, Avaí, um time russo e o Haiti: conheça o Torneio Constantino Cury

A data de fundação do São Paulo Futebol Clube é, oficialmente, 25 de janeiro de 1930. Por muitos anos, o início da história do tricolor paulista era datado como sendo o dia 16 de dezembro de 1935. A controvérsia se dava por conta da polêmica extinção do departamento de futebol do São Paulo em 1935, que foi refundado no fim daquele mesmo ano por membros da equipe tricolor contrários à fusão ocorrida com o Clube de Regatas Tietê. Sempre houve muita discussão em torno desse assunto, mas o fato é que uma parte considerável das gestões do São Paulo e também da torcida tricolor, sempre considerou que o time conhecido como São Paulo da Floresta (nascido da união entre Paulistano e Associação Atlética das Palmeiras) é parte indissociável do São Paulo atual. Tanto que em 2015, o estatuto do clube foi alterado, retirando o destaque dado à refundação do tricolor e confirmando o ano de 1930 como o de fundação.

A não oficialidade anterior, porém, nunca impediu que o clube celebrasse a história e as conquistas do São Paulo da Floresta. Em janeiro de 2000, por exemplo, na ocasião dos 70 anos de nascimento do São Paulo, foi organizado o Torneio Constantino Cury. A competição amistosa de pré-temporada fez parte de uma série de festividades e homenagens: primeiramente, pelo nome, referente ao empresário Constantino Cury, histórico dirigente tricolor, que havia falecido em julho de 99. Além disso, janeiro marcava os 70 anos do nascimento do São Paulo e no final do ano 2000, o futebol do Clube Athletico Paulistano completaria cem anos, caso não tivesse encerrado suas atividades em 1929.

Entre o final do século XX e o início do terceiro milênio, ainda eram comuns os torneios amistosos em comemoração a algo ou alguém, ou apenas como preparação no início de uma temporada. E essas competições sempre colocaram à prova jogos inimagináveis nos tempos de hoje. No Torneio Constantino Cury participaram: São Paulo, Avaí, a Seleção Nacional do Haiti, e o Uralan Elista, da Rússia. 

Homenagem ao Paulistano 

O técnico do São Paulo na ocasião era Levir Culpi. O curitibano vinha de um biênio de destaque no Cruzeiro, mas sem grandes títulos. E logo na chegada ao Morumbi, o técnico foi obrigado a levar a equipe a campo sem sequer ter completado uma semana de trabalho. E ainda por cima, sem ter sido atendido pela diretoria são paulina em relação a reforços. ‘O começo está sendo diferente do que eu pensava, mas essas são as dificuldades de início de trabalho, e tivemos que nos adaptar”, disse à época. Para a primeira partida, contra o Avaí, o treinador lançaria como titular os jogadores Raí, ídolo tricolor, e Evair, principal reforço para a temporada. 

O jogo de estreia, no dia 15 de janeiro, também teria uma bonita homenagem ao Paulistano, um dos times que deram origem ao São Paulo. A equipe paulista jogaria o primeiro tempo da partida com um uniforme inspirado nas vestimentas dos primeiros anos de futebol, com o escudo do clube que é até hoje, tirando os quatro grandes do estado de São Paulo, o maior campeão paulista da história, com onze conquistas.

Em campo, e devidamente trajados com o uniforme retrô do Paulistano, o São Paulo abriu dois a zero na primeira etapa, com gols de Marcelinho Paraíba, chutando de fora da área com o pé esquerdo, e Raí, tocando por cobertura sobre o goleiro. Evair ainda perdeu um pênalti. No segundo tempo, o Avaí reagiu e empatou com dois gols do ainda jovem Marquinhos. Mas o zagueiro Wilson salvou o dia tricolor desempatando a partida com um forte cabeceio após tiro de canto. O São Paulo estava na decisão do Torneio Constantino Cury.

Os times jogaram com as seguintes formações:

São Paulo: Rogério Luís Paulo (Carlos Miguel), Paulão (Rogério Pinheiro), Wilson e Ricardinho; Edmílson, Vágner (Alexandre), Raí (Souza) e Marcelinho; França e Evair (Jaques). Técnico: Levir Culpi. 
Avaí: Fabiano; Flavinho, Marcelo, Sérgio Andrade e Biro; Luís Fernando, Edson Garcia (Douglas), Marquinhos e Fantik (Vinícius); Dão e Missinho (Renatinho). Técnico Evandro Guimarães.

Jogos de futebol que incrivelmente já aconteceram: Uralan Elista x Haiti 

Poucos jogos são tão aleatórios e obscuros quanto a semifinal do Torneio Constantino Cury disputada no Morumbi entre os russos do Uralan Elista, sétimo colocado do campeonato russo de 1999 e a seleção nacional do Haiti. Não há – ou ao menos não pude encontrar – registros fotográficos ou em vídeo da vitória russa por 3 a 1, ocorrida no mesmo dia que São Paulo x Avaí. Com alguns brasileiros no elenco, entre eles o ex-tricolor Cassiano, o Uralan veio passar uma curta pré-temporada no país. Antes do torneio no Morumbi, a equipe havia vencido por 2 a 0 o Independente de Limeira, clube que havia negociado os jogadores Mila e Junior com os russos. Contra o Haiti, o brasileiro Brener, emprestado pelo Vasco, abriu o placar, e Dancenko marcou outras duas vezes. O nome do autor do gol haitiano é desconhecido. Depois da competição, o Uralan ainda perderia para o Bragantino por 2 a 1. 

A final

A decisão do torneio de verão teve o script esperado. Na segunda-feira, 17, o São Paulo enfrentaria um adversário de qualidade duvidosa e levantaria o primeiro troféu da temporada. Mas antes de a bola rolar para a final, houve a disputa de terceiro lugar entre Avaí e Haiti como preliminar. Embora os registros sejam tão raros quanto os do jogo anterior, é possível afirmar que a partida foi um bom espetáculo para se assistir. Com apenas cinco minutos, Missinho abriu o placar para o time brasileiro. Menelas empatou logo em seguida, e no segundo tempo, aos 13 minutos, Pierre virou para os haitianos. Renatinho voltou a empatar aos 38 minutos, e nos acréscimos, Dão deu a vitória ao Avaí. 

Em seguida, aconteceu o duelo entre São Paulo e Uralan. Em detalhes bem notados pela reportagem de César Augusto, da Rede Globo, os uniformes do time russo eram um pouco improvisados. O goleiro não tinha número, o jogador que usava a camisa 7 passou a ser o 2 e outros remendos foram utilizados no curioso fardamento auriazul. 

Apesar de frágil, o Uralan segurou bem o São Paulo, que só marcou o primeiro gol aos 30 minutos, em um belo chute de primeira de Edmilson, após cruzamento de Marcelinho Paraíba. Sete minutos depois, França ampliou de fora da área. No segundo tempo, com apenas dois minutos, os russos diminuíram o placar, com o ucraniano Semochko chutando cruzado. A partir daí, o Uralan chegou a pressionar, exigindo boas defesas de Rogério Ceni. Muito superior tecnicamente, porém, o São Paulo não demorou a transformar o jogo equilibrado em goleada. Raí marcou o terceiro aos 9 minutos, em falha do goleiro Lutsenko. 

O quarto gol tricolor merece um breve parágrafo à parte. De falta, aos 33 minutos, Rogério Ceni marcou um bonito gol. Doze anos depois, o goleiro-artilheiro fazia o seu centésimo gol na carreira em clássico contra o Corinthians. Para a FIFA e para entidades estatísticas como a IFFHS, este não poderia ser o centésimo gol de Rogério, pois gols em amistosos não entrariam na conta. Azar dos números. 

Voltando a 2000, ainda deu tempo para Souza deixar o seu e fechar a conta em 5 a 1 para o São Paulo. De forma burocrática e nada convencional, o troféu foi entregue no camarote da presidência. Quando os jogadores voltaram ao gramado para “comemorar”, já não havia mais torcedores no estádio. E é aí que a reportagem global mais uma vez nos apresenta um episódio ímpar. O zagueiro Paulão, o popular Paulão “Desmaio”, com o troféu Constantino Cury nas mãos, diz a um companheiro: “Levar pra casa isso aqui, os caras não vão achar mais nunca”. 

São Paulo e Uralan jogaram com as seguintes formações:

São Paulo: Rogério; Luis Paulo (Alexandre), Paulão (Pinheiro), Wilson, Ricardinho, Edmilson, Vágner (Sidnei), Raí (Carlos Miguel), Marcelinho Paraíba, França, Evair (Souza 68”). Técnico: Levir Culpi.
Uralan: Lutsenko; Terechtchenko, Chichine, Jarinov, Zub (Mila), Voskanian, Mikalalunas, Gaidamascluk (Arechnikon), Cassiano (Galloian), Semotchco, Brener (Régis). Técnico: Averianov.

Desdobramentos

Depois da disputa do Torneio Constantino Cury, as equipes participantes não tiveram um bom ano. O São Paulo de Levir Culpi fez uma temporada em que a equipe chegou longe em quase todos os campeonatos que disputou, mas levantou apenas mais um troféu, o de campeão paulista. Nas demais competições, derrotas traumáticas, como na final da Copa do Brasil frente ao Cruzeiro e as eliminações para Vasco e Palmeiras, no Rio-São Paulo e no Campeonato Brasileiro. O Avaí teve um ano para esquecer, terminando em 15º no Módulo Amarelo da Copa João Havelange e sendo apenas o quinto colocado no catarinense. Em relação ao Haiti, é difícil saber se o elenco era formado por jogadores da seleção principal, mas em 2000, o país passou da fase qualificatória na Copa Ouro, e acabou eliminado na primeira fase, em um triangular com Estados Unidos e Peru. 

Já o Uralan Elista é o que teve o pior destino. A equipe fundada em 1958 havia sido promovida à elite russa em 1997, e no final de 2000 acabou sendo rebaixada. Figurinha carimbada na segunda divisão russa nos anos 90, o Uralan Elista representava uma área curiosa do país. Elista, atualmente com cerca de 100 mil habitantes (de origem étnica mongol), é a capital da Calmúquia, uma das unidades federativas da Rússia e que é a única região da Europa predominantemente budista. O atual dirigente de Calmúquia é o excêntrico Kirsan Nikolayevich Ilyumjinov, um milionário adepto do xadrez e da ufologia, e que presidiu justamente o Uralan/FC Elista. O clube voltaria à elite já na temporada seguinte, mas em 2003 voltou a cair, desta vez para nunca mais voltar. Endividado, em 2005 o Uralan foi refundado como FC Elista, mas os problemas financeiros persistiram até uma nova falência em 2006. Em 2014, houve uma nova tentativa de volta, que não durou sequer um ano, e em 2015, a equipe novamente encerrou suas atividades. 


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