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A dor de Ramiro Castillo

Ramiro Castillo era um talento raro se levarmos em conta o histórico de craques de seu país, a Bolívia. Nascido em 27 de março de 1966, na pequena localidade de Coripata, a 100 km de La Paz, Castillo tinha o futebol como paixão, e assim como a grande maioria de seus colegas, via o The Strongest como maior expoente. E em 85, aos 19 anos, realizou o sonho de vestir o manto aurinegro como profissional. Apesar do corpo franzino e de sua baixa estatura (tinha apenas 1,65m), era veloz e habilidoso, e foi uma das principais peças do The Strongest campeão boliviano de 1986, o segundo título nacional da história do clube. Logo recebeu o apelido que o acompanhou durante a carreira: Chocolatín, em referência a sua cor de pele. 
 

Seu sucesso dentro de campo se refletia fora dele. Ramiro se casara há pouco com Maria del Carmen, uma colega desde a adolescência. “Tínhamos 15 anos quando fomos apresentados. Mas começamos a sair quando eu estava na universidade e ele no The Strongest. Um dia nos encontramos na rua e ele pegou meu telefone. A partir desse encontro casual começamos a nos encontrar. Nos casamos no ano seguinte e imediatamente fomos viver na Argentina, pois logo surgiu a possibilidade de jogar no Instituto de Córdoba”, disse Maria, em entrevista ao El Alto Bolívia. Em 87, Ramiro passou a defender o pequeno Instituto, da Argentina. 

Em 88, subiu mais um degrau, assinando dessa vez com o Argentinos Juniors. Seu técnico, Oscar Dertycia disse certa vez: “Se Chocolatín fosse brasileiro ou argentino, certamente valeria milhões”. No ano seguinte, foi convocado para a seleção nacional para a disputa da Copa América, no Brasil. Disputou duas partidas no Serra Dourada, na derrota por 3 a 0 diante do Uruguai e no empate sem gols contra o Equador. Além disso, chegou a semifinal da Supercopa da Libertadores. Após duas temporadas no Bicho, foi contratado pelo poderoso River Plate. Na boa equipe comandada por Daniel Passarella, acabou não conseguindo o mesmo destaque, mas ainda assim, foi convocado para a Copa América de 91, no Chile, onde novamente a Bolívia saiu do torneio sem vencer. Na sequência, passou por Rosário Central (91) e Platense (92), se tornando o único boliviano a atuar por cinco equipes diferentes na Argentina, além de ser o boliviano com mais partidas no campeonato argentino, atuando em 152 oportunidades e marcando 10 gols.
 
 
Antes de retornar ao seu clube de origem, Ramiro disputa mais uma Copa América, a do Equador, em 93. Nova campanha sem triunfos. Entretanto, nas Eliminatórias para a Copa do Mundo, a Bolívia surpreendeu a todos e se classificou em segundo lugar do grupo B com 11 pontos, um a menos que o líder Brasil, de Romário e cia. Aliás, aquele time venceu o Brasil na altitude de La Paz por 2 a 0, sendo a primeira derrota da seleção brasileira na história das Eliminatórias. Ao término do jogo, Ramiro deu uma volta olímpica com seu filho, José Manuel, de 3 anos, nos ombros. Mal sabia que o destino lhe pregaria uma peça justamente em outro confronto diante do escrete verde-amarelo. 

Na Copa do Mundo dos Estados Unidos, a seleção boliviana não conseguiu apresentar o mesmo futebol das Eliminatórias, e terminou o torneio em último lugar do difícil Grupo C, com apenas um ponto. Ramiro atuou por apenas 28 minutos, na derradeira partida em que a Espanha venceu por 3 a 1. Mas aquele grupo de jogadores ainda mostraria que tinha muito mais a oferecer ao futebol boliviano. De 93 a 96, Chocolatín atuou pelo The Strongest, mas não conseguiu grande êxito, apesar de ser um grande ídolo da torcida e do país. O último título do clube havia sido em 93, antes da chegada de Ramiro, e só voltaria a conquistar o título nacional em 2003.

A vida de Ramiro sempre foi tranquila dentro e fora dos gramados. Por isso, certamente, 1997 foi o ano mais intenso de sua vida. No início do ano, desembarcou em Viña del Mar, no Chile, para jogar pelo Everton. Apesar do pouco tempo no clube chileno, realizou partidas memoráveis, e por pouco não ajudou o clube a retornar para a primeira divisão nacional.
 
Ainda em 1997, apesar de stronguista, Ramiro assinou com o arquirrival Bolívar, graças a Javier Ortuño, dirigente que sabia que estava a fazer grande negócio. “Ele era um grande stronguista, mas conseguimos chegar a um acordo. Sua contratação pelo Bolívar foi a notícia do ano. Era uma pessoa honesta e de uma só palavra. Além do talento, se preocupava com os mais jovens”, disse o dirigente.

Em seguida, Ramiro foi convocado para uma nova Copa América. Dessa vez, em solo boliviano. A Bolívia caiu no grupo B. Apesar do grupo relativamente fácil, não se esperava tão boa campanha. A Bolívia venceu as três primeiras partidas da 1ª fase e não tomou gols: 1×0 na Venezuela, 2×0 no Peru e 1×0 no Uruguai. Nas quartas de final, encarou a Colômbia, mas em grande partida de Etcheverry e Erwin Sánchez, a Bolívia alcançou as semifinais. 
 
O adversário agora era o México, que ainda saiu na frente, com Nicolás Ramírez. Erwin Sánchez empatou em cobrança de falta espetacular, e ainda no primeiro tempo, foi a vez de Ramiro Castillo deixar sua marca. Sánchez bateu falta com força, a bola bateu na barreira e desviou em Ramiro. Era a virada boliviana, que ainda marcou o terceiro com Jaime Moreno. A Bolívia estava novamente em uma final de Copa América, e podia repetir o feito de 1963. 
 
A final, no dia 29 de junho, seria contra o poderoso Brasil que havia massacrado todos os adversários até então. Mas a confiança era enorme, inclusive para o retraído, mas sempre sorridente Ramiro. Durante a preleção, chega uma notícia avassaladora. José Manuel, de 7 anos, filho de Ramiro, foi internado às pressas com uma insuficiência hepática fulminante. Sem Ramiro e abalados pela notícia, a Bolívia lutou bravamente, mas acabou derrotada. Em campo, e fora dele. No placar da final, o Brasil venceu por 3 a 1. No placar da vida, Ramiro Castillo sofreu um gol contra. José Manuel não resistiu e acabou falecendo.
 
A dor de perder um filho passou a ser insuportável para Ramiro, que ainda tentou superar a tristeza com o futebol, mas não obteve sucesso. Seu último gol foi marcado pelo Bolívar, em sua última partida com a camisa celeste. Vitória de 3 a 1 sobre o Destroyers. O jogador que por 52 vezes vestiu a camisa da Bolívia, realizou sua última partida representando a seleção nacional no dia 12 de outubro, em Guayaquil, na derrota por 1 a 0 para o Equador pelas Eliminatórias. “Era um rapaz muito simpático e que alegrava o grupo junto com seu irmão mais novo, Iván. Não abandonava seu mate de coca. Tínhamos medo de que ele caísse em algum teste anti-doping”, disse aos risos Guido Loayza, ex-presidente da Federação Boliviana, em entrevista a rádio FM Bolívia.

 
Na manhã do dia 18 de outubro de 97, um dia após a data que seria o aniversário de 8 anos de José Manuel, um sábado, Ramiro é encontrado morto em sua casa com uma gravata amarrada ao pescoço. A autópsia indicou que não havia nenhum resquício de drogas ou álcool no sangue de Ramiro. Foi enterrado ao lado de José Manuel.
 
Sua morte causou comoção imediata. O clássico entre Bolívar e The Strongest, do qual Ramiro provavelmente seria o grande protagonista, e que seria disputado no domingo, foi cancelado. Por dificuldades para conseguir voos comerciais, a Força Aérea Boliviana enviou um avião para a Argentina para buscar Ivan Castillo, irmão de Ramiro, e que jogava no Gimnasia de Jujuy. O irmão mais velho de ambos, Eloy, em uma crise emocional, solicitou inclusive a exumação do corpo, pois não acreditava que seu irmão tiraria a própria vida.
 
Maria del Carmín, apesar do choque de perder um dos filhos e o marido em questão de meses, teve de seguir em frente, afinal, tinha outros dois filhos para criar, Ramiro Jr. e Marjorie. “Foi muito difícil. O motivo principal para seguir adiante foram meus dois filhos. Me custou muito superar a depressão, estive medicada durante muitos meses. Me sinto muito nostálgica quando recordo essa época”.
 
O legado de Ramiro permanece na escola de futebol que havia criado em El Alto, da qual Maria cuidou até meados de 2012. “Foi difícil me adaptar sem eles, mas Ramiro me deixou uma linda herança: a escola de futebol. Essa ocupação me manteve à tona e preencheu meus dias. Tinha a meta de continuar e fazer possível o sonho de Ramiro quando fundou a escolinha. Isso e a força de Deus é que me mantiveram em pé”. Sem conseguir manter mais a escola, ela foi vendida. Mas com uma condição: que se mantivesse o nome de Ramiro Castillo.
 
“Me sinto muito satisfeita em ver meus filhos felizes. Apesar da tristeza, sempre lhes disse. ‘Olhar pra trás nem para tomar impulso’. Agora nós temos uns aos outros para viver sem eles. Ramiro e José Manuel sempre estarão em nossas memórias, não apenas em datas especiais, mas em todos os dias da nossa vida”.


Texto originalmente postado em 9 de setembro de 2015, no blog Escrevendo Futebol, e editado em 30 de abril de 2019.

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