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Reportagem

A excursão da morte

Houve um tempo que a subsistência de um clube de futebol em meio ao recente profissionalismo se dava através de poucas fontes de recursos. Bilheterias ou a ajuda de mecenas eram parte importante da “engenharia financeira” da primeira metade do século XX. Os clubes um pouco mais prestigiados também tinham uma opção mais rentável que os jogos locais: as famosas excursões. Realizadas nas proximidades da cidade-sede, interestaduais ou internacionais, as excursões eram uma forma praticamente certa de arrecadação.

Em meio a essa ânsia pelo capital, no ano de 1943, os dirigentes do pernambucano Santa Cruz decidiram fazer uma viagem com destino ao Norte brasileiro. Já naquela época, a Cobra Coral era um dos times mais conhecidos da região Nordeste. Localmente, havia conquistado cinco títulos estaduais entre 1931 e 1940, igualando com o América e estando atrás apenas do Sport. Mas naquele momento, o clube passava por uma crise financeira e precisava fazer uma graninha.

A crise tricolor não era nada comparável ao que acontecia há milhares de quilômetros dali, do outro lado do Oceano. A Segunda Guerra Mundial vivia o ápice de destruição em solo europeu, e politicamente, o Brasil se posicionava também em pé de guerra contra o Eixo. Entre 41 e 44, o Brasil sofreu 35 ataques marítimos por parte das forças militares da Alemanha e da Itália, em locais que cortavam todo o Oceano Atlântico, da Filadélfia ao Cabo da Boa Esperança.  Na costa brasileira, o receio de ataques aéreos fazia as cidades litorâneas viverem em blecaute. Assim como os navios, que viajavam às escuras, com medo de um ataque submarino. E foi no meio deste contexto que o Santa Cruz se lançou ao mar e posteriormente adentrou os rios amazônicos para viver a mais perigosa aventura da história do centenário clube. 

A ideia inicial era de ir até mesmo à Paramaribo, na Guiana, mas o CND (Conselho Nacional dos Desportos) impediu a saída do clube do país, seguindo uma recomendação do Itamaraty, por conta da Guerra. O início da longa viagem se deu logo no segundo dia de janeiro. Escoltados por dois navios da Marinha brasileira, o navio a vapor Pará navegou com as luzes apagadas e o grupo de jogadores se estabeleceu no convés da embarcação. Armados de foices e facões, e com o salva-vidas ao lado, se preparavam com o que tinham em mãos. Apesar de toda tensão envolvida, a viagem por mar ocorreu sem maiores transtornos.

Dois dias após sair de Recife, a primeira parada aconteceu em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Na primeira partida, o Santa Cruz goleou a seleção potiguar por um impiedoso placar de 6 a 0. Depois, passou por Fortaleza e em 10 de janeiro desembarcou em Belém, onde foi recebido com festa e retribuiu com grande atuação, vencendo o Tranviário por 7 a 2. Ainda na capital paraense, fez outros quatro jogos, vencendo o Tuna Luso, empatando com a seleção paraense e com o Paysandu, e perdendo para o Remo.

Dali partiram para Manaus em um tradicional vapor gaiola, em uma viagem que durou longas e monótonas duas semanas. O cansaço prejudicou a primeira atuação da equipe, e a o Santinha perdeu por 3 a 2 diante do Olímpico. Contra o Nacional, atual bicampeão estadual, o tricolor mostrou sua real força e venceu por 6 a 1, e contra o Rio Negro, quase repetiu a dose, com um 5 a 1. Neste período na capital amazonense, uma disenteria atacou uma parte dos membros da delegação, entre eles Aristófanes Trindade, jornalista e chefe da excursão. Então a equipe iniciou o retorno com destino a Belém, mas deixa três passageiros em Manaus. Os jogadores Sidinho, França e Omar aceitaram ofertas de times locais e por lá ficaram.

Superado o medo de um ataque submarino e a longa viagem de ida, a delegação tricolor passou por novos problemas. Na passagem por Santarém, os jogadores King e Papeira foram aparentemente diagnosticados com malária. A delegação chega a Belém no dia 28 de março e partiria o mais rápido possível para Recife. Porém, no dia 1º de março, o tráfego marítimo é suspenso por ordem do governo federal. Para pagar as despesas de alimentação e também do hospital usado para tratar dos dois atletas doentes, o Santa Cruz foi arranjando jogos pela cidade. Em 2 de março vence o Remo, que hospeda o barco do Santa Cruz em sua garagem náutica. Vitória por 4 a 2. Dois dias depois da partida, King não resiste à enfermidade e morre. O jogador recebe muitas honrarias, mas o show tinha de continuar, e no dia 7 de março o Santa Cruz entra em campo para enfrentar o Paysandu. No mesmo dia, nova notícia trágica: Papeira também sucumbiu.

Sem mais condições de persistirem na viagem, os dirigentes buscam soluções para a volta, em vão. Apenas no dia 28 de março, enfim, o Santa Cruz consegue embarcar, em uma viagem com escala em São Luis. A escala serviria para encaminhar 35 ladrões detidos pela Polícia do Pará. No Maranhão, novo problema. A embarcação ficou retida e só poderia sair com comboio. Até a viagem ser remarcada, o Santinha faz novos jogos, com faturamento distribuído entre os jogadores. Após liberada a viagem da embarcação, a Cobra Coral passa por outros perrengues. Um temporal amedronta os tripulantes, e como se não fosse o suficiente, submarinos são detectados pelo radar. O barco então retorna para São Luis. Sem a possibilidade de ir para o mar, chega a hora de viajar de trem. Da capital maranhense à Teresina, capital do Piauí, o trem descarrilha por duas vezes, obrigando a equipe a realizar novas partidas. De lá, partiram de ônibus para Fortaleza, onde a equipe chegou à marca de 28 jogos durante a excursão. Finalmente, no dia 2 de maio, exatos quatro meses após a partida, o Santa Cruz chegou à Recife com: 15 troféus a mais, cinco jogadores a menos e muita história para contar.


Para escrever este texto foram consultadas edições diversas do jornal Diário de Pernambuco e a Reportagem “A Excursão da Morte” da Revista Placar nº 505, de dezembro de 1979, escrita por Lenivaldo Aragão, um dos mais experientes jornalistas de Pernambuco.

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