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O atacante que ousou sonhar

Ao decolar para o voo mais alto de sua carreira, o argentino Emiliano Sala certamente tinha em seus planos marcar seu nome na história. O atacante deixou Nantes, na França, na noite de segunda-feira, 21 de janeiro, em um avião monomotor para atravessar o Canal da Mancha com destino a Cardiff, no País de Gales, onde vestiria a camisa do time local, que luta contra o descenso na Premier League, a maior liga do mundo. Em dado momento da viagem, o avião sumiu dos radares para não mais ser encontrado, ao menos até o momento – as buscas foram encerradas na tarde desta quinta-feira, 24, três dias após o sumiço e os investigadores descartam a possibilidade de encontrar as vítimas com vida. Junto dele estava apenas o piloto, o britânico David Ibbotson, de 60 anos e pai de três filhos.

Sala, de 28, vivia o auge de sua carreira, construída quase toda na França, com especial destaque para seu período em Nantes, e de onde chamou atenção do Cardiff, que pagou pelo jogador uma quantia recorde na história do clube, depositando nos cofres da equipe francesa a quantia de 15 milhões de libras, o equivalente a cerca de 73 milhões de reais. Como muitos meninos sul-americanos, Sala sonhou com o sucesso no mundo da bola. Fã de Batistuta, o jogador aprendeu o jogo na Argentina, se desenvolveu na França e iria ser posto à prova definitivamente no futebol inglês. Seria a recompensa para um caminho trilhado desde cedo.

Nascido em Cululú, um povoado da província de Santa Fé, se mudou aos 4 anos com sua família para Progreso, onde passou a jogar no San Martin local. Apoiado pelo pai, o caminhoneiro Horacio e pela mãe, Mercedes, Sala fez da bola a sua companheira fiel. “A única coisa que fez em sua vida foi estar todo dia com a bola. No pátio de casa, em qualquer campinho, até descalço, se necessário”, disse o irmão Dario, em entrevista recente. Emiliano ainda tinha outra irmã, Romina. Seu estilo de jogo rompedor logo lhe rendeu o apelido de “Tanque”, quando atuou pelo Juventud Guadalupe, emprestado pelo Proyeto Crecer, uma escolinha de futebol parceira do Bordeaux. De tempos em tempos, Sala passava por uma espécie de estágio em solo francês. Mas antes de desembarcar na França em definitivo, Sala chegou a ter uma experiência pelo Futebol Clube do Crato, da vila do Crato, Portugal. Fez apenas uma partida e marcou dois gols, voltando para a Argentina ao alegar que precisava ajudar uma namorada com problemas.

Aos 20 anos, enfim, assinou seu primeiro contrato profissional com o Bordeaux. “Foi difícil, deixar a família, outro idioma. Não foi fácil, mas eu persisti pelo meu sonho e trabalhei duro para chegar lá”, disse Sala em entrevista ao canal oficial do Nantes, em 2017. Não foi apenas a saudade ou o idioma que eram um empecilho. O jogador teve de esperar dois anos para enfim fazer sua estreia pela equipe principal, durante a prorrogação de um jogo da Copa da França contra o Lyon. Embora formado e acompanhado de perto pelo Bordeaux, Sala nunca teve uma sequência. Entre 2009 e 2015, foram apenas 13 partidas, um gol feito e três empréstimos. Ao menos, o argentino aproveitou bem as chances que teve nestas outras equipes. Na temporada 2012-13, fez 18 gols pelo Órleans, na terceira divisão francesa. Na temporada seguinte, fez 19 gols pelo Niort, na Ligue 2. E em 2015, participou da segunda metade do campeonato francês pelo Caen, marcando 5 gols em 13 jogos.

Foi quando o Nantes resolveu apostar no jogador, oferecendo um contrato de 5 anos e levando-o por apenas 1 milhão de euros. Oito vezes campeão da Ligue 1, o Nantes não levanta o troféu desse 2001 e de lá para cá viveu anos difíceis em sua história, com crise financeira e rebaixamentos. Com os gols de Sala, ao menos, o medo pelo descenso sumiu. Em sua primeira temporada, foram apenas 6 gols, o suficiente para  ser o artilheiro da equipe no ano. Nas duas temporadas seguintes, 12 tentos marcados em cada uma contribuíram para permitir os torcedores canários a sonharem com uma vaga nas competições europeias. Na temporada atual, em apenas metade dos jogos, já havia feito outros 12 gols. Foram 48 gols em 133 partidas, colocando o jogador entre os 20 maiores artilheiros da história do clube. Foi então que surgiu a oportunidade de ouro.

Esguio com seus 1,87m e 75kg, Sala é um centroavante clássico. Bom no jogo aéreo, o atacante chegaria para ser titular no Cardiff, 18º colocado e dono do 2º pior ataque do campeonato inglês, ao lado do Newcastle. Assinou o contrato no sábado, 19, e voltou para Nantes para se despedir dos amigos que fez no clube. Em seu Instagram, registrou o momento. “A última. Tchau”.

Nós, brasileiros, conhecemos bem a dor que estão sentindo os torcedores do Nantes. Há pouco mais de dois anos vivemos um momento parecido, e apesar de tudo, ainda mantemos a esperança de que Sala possa aparecer com vida. E possa realizar todos os sonhos que o menino que jogava nas calles argentinas um dia sonhou.

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