Um dia após o último Natal, uma data considerada sagrada pelos cristãos, a Itália, país sede da Igreja Católica, líder do Cristianismo no Mundo, mostrou seu lado mais perverso. Em Milão, no jogo entre Internazionale e Napoli, o zagueiro senegalês Kalidou Koulibaly foi insultado por sua cor de pele. O defensor teve de ouvir torcedores imitando sons de macaco na mais vil ofensa que pode ser cometida. O sistema de som do estádio San Siro pediu por três vezes que os cânticos e ofensas parassem, sem efeito. O juiz permitiu que a partida seguisse sem maiores problemas, e aos 35 minutos Koulibaly acabou expulso por tomar o segundo cartão amarelo.
Ao fim do encontro, o jogador comentou em suas redes sociais o ocorrido. “Peço desculpas pela derrota e, sobretudo, por ter deixado meus companheiros na mão. Mas tenho orgulho da cor da minha pele. De ser francês, senegalês, napolitano: homem”. O treinador partenopei, Carlo Ancelotti, também saiu em defesa do atleta. “Nós pedimos três vezes para que alguma ação fosse tomada, mas a partida continuou. Continuavam dizendo que o jogo poderia ser interrompido, mas quando? Depois de mais quatro ou cinco anúncios? Na próxima vez, talvez tenhamos que resolver com as próprias mãos e sair de campo. Eles provavelmente vão nos fazer desistir do jogo, mas estamos preparados para isso”.
Mas em um momento político mundial em que o racismo e a segregação volta a se tornar bandeira política, há aqueles que fazem questão de apresentar o sórdido caráter. Matteo Salvini, vice-Primeiro Ministro italiano e membro da Lega Nord, principal partido de direita da Itália, minimizou o ocorrido. “Racismo é coisa de idiotas em 2018, mas não vamos colocar tudo no mesmo saco. Nos estádios eles também cantam “Milão em chamas”. Isso seria racismo também? Bonucci foi vaiado por torcedores do Milan, isso também é racismo? A provocação saudável entre as torcidas não deve ser considerada racismo”.
Chamado de Il Capitano por seus correligionários, o posicionamento não é surpresa. Assim como não é surpresa vermos um racismo tão evidente em um estádio de futebol em tempos como os atuais. Não é coincidência, claro, o crescimento de certos personagens políticos estar ligado ao crescimento da intolerância dentro do futebol. Casos de racismo e discriminação em estádios de futebol têm aumentado gradualmente, conforme vamos explorar a seguir.
De acordo com a organização inglesa Kick It Out, o racismo, a homofobia e outras formas de discriminação, como o antissemitismo, cresceram 11% na temporada 2017-18 no futebol inglês em todos os níveis, sexto crescimento anual consecutivo. “Eu gostaria de ser otimista, mas depois das estatísticas, não há como acreditar que as coisas estarão bem daqui dois ou três anos”, disse Troy Townsend, um dos representantes da entidade e pai de Andros Townsend, jogador do Crystal Palace, em entrevista à BBC.
O recorte inglês não está distante de nossa realidade. Em novembro de 2018, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol publicou o Relatório Anual da Discriminação Racial, referente ao ano de 2017. Este foi o quarto estudo sobre o tema e apresentou 77 casos que envolvem racismo, machismo, xenofobia e homofobia em todos os esportes, no Brasil ou no exterior em casos com envolvimento de brasileiros, como em partidas da Libertadores, por exemplo. No caso do racismo, houve um crescimento de 25 casos relatados em 2016 para 43 casos relatados em 2017.
Para Marcelo Carvalho, idealizador do Observatório, esse crescimento se deve ao aumento das denúncias e também ao momento político. “Jogadores, torcedores e a mídia em geral não estão mais aceitando calados os casos. Existe uma maior conscientização da importância de denunciar e lutar contra”, afirma. Para ele, a atuação política de grupos discriminatórios, especialmente de extrema-direita, “influencia e encoraja pessoas preconceituosas a expressarem seu preconceito”.
Para reverter este quadro, Marcelo explica que é preciso a atuação das instituições em ações de educação e punição. “Existe uma maior conscientização e um aumento de número de grupos que mobilizam para lutar contra os preconceitos nos estádios. No Brasil estes grupos crescem sem o apoio ou participação dos clubes. Grupos que lutam principalmente contra o machismo e a homofobia. Em primeiro lugar (é necessário) punição aos envolvidos (clubes e torcedores). No Brasil nada funciona se não houver punição. Em segundo lugar, ou paralelamente, campanhas efetivas contra os preconceitos e a discriminação nos estádios e fora dele. Quem deve estar na frente dessas campanhas é a CBF e os clubes. Mas não pode ser algo esporádico e pontual. Precisa ser educativa e envolver torcedores, sócios e categorias de base”.
Sem a participação dos principais personagens do jogo, Marcelo não acredita na redução deste quadro discriminatório. “Mesmo que alguns clubes comecem a se manifestar, não tenho muita esperança. O Ministério do Esporte precisa estar envolvido, assim como a Justiça Desportiva e neste momento do país tudo leva para um caminho contrário”.