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Reportagem

Os primeiros negros do futebol

O futebol nasceu na Inglaterra do século XIX em meio à aristocracia, nas escolas e universidades do reino. Naturalmente, por conta dessa origem, os homens brancos eram maioria na prática do esporte. Com a popularização do futebol, que ganhou seu ápice na Europa e na América do Sul a partir do período entre as duas Guerras Mundiais, os negros foram aos poucos fazendo parte deste universo, rompendo muitas barreiras sociais. Naturalmente, foi na Grã Bretanha onde os primeiros negros tiveram a oportunidade de jogar o esporte. Entretanto, apenas a partir da década de 70, com o sucesso dos Three Degrees, trio do West Bromwich formado por Cyrille Regis, Laurie Cunningham e Brandos Batson, que as equipes da região passaram a contar com um grande contingente de negros em seus quadros.

No Brasil, a política dos primeiros clubes era excludente e elitista, mas a partir da década de 20, especialmente após o Vasco buscar talentos nos subúrbios, os negros brasileiros foram conquistando seu espaço, aproveitando também, e estimulando, a questão do profissionalismo, na época ainda proibido mas que existia informalmente. Na Inglaterra e no Brasil, seis nomes se destacam como os homens de cor pioneiros dentro do futebol.

Os primeiros negros do futebol mundial

Até onde se conhece dos registros, dois homens se destacam como os primeiros negros do futebol mundial. Na década de 1870, Robert Walker e Andrew Watson atuaram juntos em uma equipe chamada Parkgrove, de Glasgow, na Escócia. Do primeiro, não há muitas informações sobre sua trajetória. Sabe-se basicamente que Robert Walker era escocês e também jogou no Third Lanark, uma equipe formada por um regimento do Exército Britânico e disputou a final da Copa da Escócia de 1876, em que a equipe ficou com o vice-campeonato. Já Watson possui uma carreira mais sólida e bem mais documentada que a do ex-companheiro, embora tenha sido descoberta recentemente pelo Museu do Futebol da Escócia. Nascido na Guiana, em 24 de maio de 1856, na época que o território era controlado pelo Império Britânico, Andrew Watson era filho de uma ex-escrava com um fazendeiro. Ainda criança, saiu da colônia para estudar no Império. Se tornou engenheiro marítimo, mas nos campos de futebol é que realmente se realizava. Teve quatro filhos, dois em cada casamento que teve – a primeira esposa faleceu precocemente.

Andrew Watson

Era um jogador alto e forte, e atuava como zagueiro, em um tempo que a defesa não era uma prioridade, visto que as equipes atuavam no esquema clássico, o 2-3-5.  Iniciou sua carreira em um time escocês chamado Maxwell FC e depois atuou pelo Parkgrove, anteriormente descrito, onde teria atuado entre 1874 e 1800. De lá, vestiu a camisa do Queens Park, um dos times mais prestigiados da época, e que até hoje vive no completo amadorismo, ficando até 1882. Nesse período, foi convocado três vezes pela Seleção da Escócia, atuando em dois jogos contra a Inglaterra e um contra País de Gales, tendo sido capitão em um deles, mostrando que era um cidadão respeitado por seus pares. Nos três jogos, vitórias acachapantes do quadro inglês: 6-1 e 5-1 contra a Inglaterra e 5-1 contra Gales.

Em 1882, porém, parte para o futebol inglês para jogar pelo London Swifts, onde fica até 1884, e praticamente dá adeus à seleção, afinal, naqueles tempos as seleções nacionais eram convocadas apenas com jogadores do futebol local. Na temporada de 1984-85, joga pelo Corinthian FC. Para quem não sabe, o Corinthians brasileiro teve seu nome inspirado no amador clube inglês, que excursionou no Brasil no início do século XX, e anos depois se fundiu com o Casuals FC, formando o Corinthian Casuals, que enfrentou o Timão em um amistoso em 2015.

Após esta temporada, retorna ao Queens Park, onde jogou mais duas temporadas. No total, pela equipe escocesa, conquistou 4 Charity Cup, um torneio praticamente restrito a equipes de Glasgow, e 2 Copas da Escócia. Em 1887, assina com o inglês Bootle FC onde fica até 1892 e encerra sua carreira.

Além dos feitos em campo, Watson também trabalhou como secretário de algumas equipes, podendo ser considerado o primeiro negro a ter um cargo na direção de um clube de futebol. Era dele a função de organizar o calendário de jogos em Parkgrove e também no Queens Park. Apesar de a possibilidade de ter recebido dinheiro para jogar seja bem provável, principalmente quando se mudou para Londres, Watson viveu uma era pré-profissionalismo, legalizado oficialmente apenas em 1885. Faleceu em 8 de março de 1921, aos 64 anos, em Londres, vítima de pneumonia.

Arthur Wharton, o primeiro negro a jogar futebol profissionalmente

Arthur Wharton nasceu em 28 de outubro de 1865, em Accra, Gana, também um país que no final do século XIX era colônia inglesa. Filho de um escocês de origens em Granada e uma mulher negra local, Arthur foi enviado à Inglaterra, em Darlington, aos 17 anos para se tornar um missionário metodista. Mas o jovem, como tantos outros daquela época, foi rapidamente captado pela paixão do futebol. Jogava como goleiro, embora também atuasse na ponta.

Arthur Wharton

Tinha um físico invejável, e era um multidesportista, algo até não tão incomum em tempos de amadorismo. Praticou ciclismo, atletismo e críquete (os dois últimos de forma profissional), e se tornou em 1886 recordista nacional nos 100 metros rasos, com uma marca na casa dos 10 segundos, e no ano seguinte bateu um recorde de tempo fazendo de bicicleta um trajeto entre Preston e Blackburn. Atuou pelo Darlington, pelo Preston North End, ainda como amador, e em 1889 recebeu uma proposta do Rotherham. Foram cinco anos no clube como o primeiro negro a assinar um contrato profissional, e também foi o primeiro negro a disputar jogos da Football League. Jogou também pelo Sheffield United, Stalybridge Rovers, Ashton North End e Stockport County, onde se aposentou aos 36 anos.

Sua escolha por se tornar um esportista cobrou seu preço. De uma família relativamente bem sucedida, o esporte o fez ser considerado um cidadão de segundo escalão. Teve de trabalhar nas minas de carvão para seguir sobrevivendo, e inclusive participou de uma das grandes greves da categoria na história nos anos 20. Faleceu em 1930, pobre e acometido pelo alcoolismo, algo relativamente comum para muitas pessoas – do esporte ou não.

Praticamente esquecido por mais de 7 décadas, Wharton aos poucos foi ganhando o merecido reconhecimento. Recentemente, em 2014, a Football Association inaugurou em sua sede, no St. James Park, uma estátua em homenagem ao goleiro.

Miguel do Carmo: fundador e atleta da Ponte Preta

São poucos os registros sobre a vida de Jorge Araújo Miguel do Carmo, ou apenas Migué, como costumava ser chamado. Nascido no dia 10 de abril de 1885, três anos antes da abolição da escravatura, Migué não foi apenas um jogador de futebol, mas foi um dos fundadores da tradicional Associação Atlética Ponte Preta. Em 1900, assinou a ata de fundação do clube, e atuou em partidas desde aquele ano, além de ter atuado como tesoureiro. Outros homens negros, ainda não identificados pelos pesquisadores, também fizeram parte das equipes formadas pela Macaca no início daquele século.

Migué atuou com a camisa da Ponte até meados de 1904, quando foi transferido para Jundiaí, pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro, empresa para qual trabalhava como fiscal de linha. Morreu em 1932, com apenas 47 anos, por complicações após uma cirurgia no estômago. De acordo com o historiador do clube, José Moraes dos Santos Neto, além de Migué, haviam outros três negros e dois mulatos como fundadores do clube. No dia 10 de agosto de 2014, em comemoração aos 114 anos da Ponte Preta, o filho de Migué, Geraldo do Carmo, recebeu o título de cidadão pontepretano em nome do pai.

Joaquim Prado, negro e aristocrata

De Joaquim Prado, os vestígios são ainda mais escassos. A única citação mais esclarecida sobre o jogador aparece no livro “O negro no futebol brasileiro”, do jornalista Mario Filho. Na publicação, lançada em 1947, Mário Filho afirma que Joaquim Prado era o extrema-esquerdo do Paulistano, tradicional clube da cidade de São Paulo. “Joaquim Prado era preto, mas era de família ilustre, rico, vivia nas melhores rodas”.

No livro “Do fundo do baú”, de Laércio Becker, Joaquim aparece na ficha técnica do jogo Paulistano 1×1 São Paulo Athletic Club, de 19 de junho de 1904. No ano seguinte, o Paulistano foi campeão paulista, e Joaquim atuou pelo menos em uma partida, na vitória do Paulistano por 3 a 0 sobre o Mackenzie, no dia 13 de maio. Ou seja, é provável que Joaquim Prado tenha sido o primeiro negro campeão estadual do país.

Francisco Carregal, negro e proletário

O Bangu possui uma bela história de contribuição ao futebol brasileiro, principalmente quando se trata sobre a popularização do esporte. De origem proletária, afinal, o clube era formado por trabalhadores da fábrica têxtil de mesmo nome, o Bangu também foi um dos pioneiros da democratização racial do futebol. Por muitos anos, Francisco Carregal foi considerado o primeiro negro do futebol brasileiro. Entretanto, os feitos de Migué e Joaquim não diminuem em nada a história de Carregal, afinal, ele foi o primeiro operário negro de uma equipe. O tecelão da Fábrica Bangu, filho de mãe brasileira negra e pai português branco, foi escalado para um jogo contra o Fluminense, no dia 14 de maio de 1905 (portanto, um dia após ao jogo em que Joaquim atuou contra o Mackenzie, por exemplo). O Bangu saiu vitorioso pelo placar de 5 a 3.

Francisco Carregal, com a bola nas mãos

Aliás, Carregal era o único brasileiro daquele time, que contava com cinco ingleses, (Frederick Jacques, John Stark, William Hellowell, William Procter e James Hartley), três italianos (Cesar Bochialini, Dante Delocco e Segundo Maffeu) e dois portugueses (Francisco de Barros e Justino Fortes).

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