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As aventuras de Gaddafi

Em 2011, a Líbia via o regime de Muammar Gaddafi sucumbir. Como era de se esperar, a queda do ditador trouxe os mesmos males dos quais padecem outras nações que, digamos, receberam uma “dose de democracia ocidental”. O país vive atualmente* uma guerra civil, e está retalhado politicamente, dividido basicamente em quatro grandes facções: o Parlamento Líbio, governo internacionalmente reconhecido, apoiado pelo Exército Nacional, pelo grupo paramilitar Brigadas de Zintan e por países como Estados Unidos e Rússia; o Novo Congresso Geral Nacional, formado pelos derrotados nas eleições de 2014 e ligado a grupos paramilitares como a RSF, do Sudão e milícias étnicas como os Tuaregues; o grupo jihadista Conselho da Shura de Revolucionários de Bengazi; e o mais famosos grupo terrorista da atualidade, o Estado Islâmico.

Nos 42 anos à frente do poder, Muammar Gaddafi colocou a Líbia como um dos países de maior IDH da África e chegou a deixar o país com a menor dívida pública do mundo. Entretanto, perseguiu, torturou e matou oposicionistas, atuou em diversos conflitos no continente africano de maneira contraditória, concentrou as riquezas da nação em suas mãos e mais recentemente, durante o conflito que o derrubou do poder e o assassinou, cometeu diversos crimes contra a humanidade (vale salientar aqui, realizados também por facções contrárias ao ditador, e por soldados da OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte). Mas a principal marca de Gaddafi, ao menos para nossa cultura pop, era sua excentricidade. O dinheiro e o poder são ingredientes perfeitos para os mais bizarros e curiosos personagens. Não seria diferente com a família Gaddafi, e isso alcançou também o futebol, que é onde queríamos chegar com essa rápida contextualização da política líbia.

Al Saadi Gaddafi, terceiro de oito filhos de Muammar Gaddafi, é um desses seres que preferem aproveitar o poder para curtir a vida adoidado, como a personagem interpretada por Matthew Brodderick, em uma tarde livre em Chicago, mas sem o mesmo carisma, claro. Apaixonado por futebol, se tornou jogador, dirigente e tudo o que se puder imaginar no futebol líbio. Foi campeão pelos maiores clubes de Trípoli, o Al Ahly e o Al Ittihad. Mas sempre levantou óbvias suspeitas. Quem ousaria o vencer? Que árbitro não marcaria um pênalti em lance duvidoso? Capitaneava a seleção nacional, da qual também era presidente, e derrubava treinadores como se fosse dirigente brasileiro. Segundo a Wiki italiana, foi bicampeão nacional pelo Al Ittihad (2002 e 2003), da Copa da Líbia pelo Al Ahly (2001) e bicampeão da Supercopa da Líbia, uma pelo Al Ahly e outra pelo Al Ittihad (2001 e 2003). Jogou até mesmo partidas pela Liga dos Campeões da África.

Na maravilhosa era do Youtube, podemos ver as qualidades de Saadi como jogador. Sinceramente, a não ser que os outros jogadores não fizessem nada quando jogassem contra ele, até que não aparentava ser tão ruim, ao menos para os padrões líbios.

Playboy, curtia muitas de suas férias na paradisíaca Malta e em junho de 2000 assinou com o Birkirkara, com o objetivo de jogar a Champions League. Por algum motivo, Saadi sequer vestiu a camisa do clube maltês. Mas ele continuaria a almejar o sonho de atuar em uma grande equipe. E conseguiria, certamente, graças a sua atuação nos bastidores da bola, em especial no futebol italiano. Vamos voltar na história e lembrar a ligação entre Líbia e Itália. O país africano foi colônia italiana entre 1911 e 1947, e com Gadaffi, ambos se tornaram importantes parceiros comerciais.

Sua influência era gigantesca. Em 2002, convidou dirigentes de vinte federações e associações da África para um encontro em que agraciou cada um deles com 4 milhões de dólares. Tudo isso para ajudar o suíço Jospeh Blatter, presidente da FIFA, a manter seu “carisma” com o futebol local, de acordo com o livro Jogo Sujo, do jornalista inglês Andrew Jennings. A relação com os donos do jogo era tamanha, que a Líbia chegou a apresentar uma candidatura conjunta com a Tunísia para sediar a Copa do Mundo de 2010, mas ambos os países desistiram após a FIFA afirmar que não consideraria candidaturas conjuntas. Jogando pelo Al Ittihad, conseguiu marcar partidas contra gigantes europeus como o Barcelona e a Juventus. No dia 2 de abril de 2003, o Més que un club goleou o Al Ittihad por 5 a 0 diante de 15 mil pessoas no Camp Nou.

Também em 2002, assinou com a Lazio, clube no qual já havia participado de treinos, um acordo de cooperação com a Federação Líbia de Futebol e comprou 7% das operações da gigante Juventus por 17 milhões de euros. “Desde que nasci sou fã da Juventus, e isso só ficou mais forte com os fantásticos jogadores que se seguiram a Platini: Roberto Baggio, Alessandro Del Piero e Zinedine Zidane”, disse em entrevista na época. Tentou, tempos depois, uma aproximação com o inglês Liverpool. Amigo de Maradona, foi treinado durante três anos pelo ex-velocista Ben Johnson, aquele mesmo, pego no doping durante as Olimpíadas de 88, em Seul.

Conseguiu também levar a decisão da Supercoppa italiana para Trípoli. No Estádio 11 de junho, a Juventus, time do coração de Saadi, venceu o Parma por 2 a 1, com dois gols de Del Piero. Na festa do título, claro, lá estava Saadi aparecendo em todas as fotos. Não fica difícil relacionar a produção de petróleo líbia, uma das principais do mundo, com a Fiat, proprietária histórica do clube bianconero.

Em 2003, Gaddafi realizou com o Al Ittihad, uma viagem ao Brasil. Enfrentou uma equipe de reservas do São Paulo, no Morumbi, no dia 27 de março, e empatou por 1 a 1, com direito ao craque Careca como camisa 9 de seu time. Claro que imaginamos que o time tricolor tenha tirado o pé. Dill abriu o placar de falta e Harei empatou para o time líbio. Saadi ainda pôde conhecer a estrela Kaká. O líbio afirmou à imprensa que “seria muita pretensão querer jogar no São Paulo” e convidou o Tricolor paulista para um amistoso em Trípoli, naturalmente, jamais realizado. A imagem é uma reprodução do jornal Estado de São Paulo.

Ainda em 2003, fechou com a tradicional equipe italiana do Perugia, que fez naquela temporada sua última participação na Serie A. O presidente do grifo na época era o fanfarrão Luciano Gaucci. A negociação contou inclusive com um dedo do então primeiro-ministro italiano e dono do Milan, Silvio Berlusconi, aliado político e econômico de Muammar Gaddafi.

A maluquice ganhou as manchetes de todo o mundo, mas o retorno esportivo foi nulo. Saadi estreou em um jogo oficial apenas nove meses após a assinatura de contrato. Primeiro porque o técnico Serse Cosmi tinha bom senso. Depois, quando passou a ser relacionado, foi pego em um exame antidoping com traços de Nandrolona (uma espécia de anabolizante) no sangue.  Seu único jogo foi um duelo diante da Juventus (de novo a Vecchia Signora). Mas o jogador entrou apenas nos 15 minutos finais. Ao menos o Perugia manteve a vitória por 1 a 0. Saadi ainda ficou na equipe pela temporada seguinte, porém, sem entrar em campo.

Em 2005, acertou com a Udinese, que jogaria os play-offs da Champions League. Mas além de não ter atuado pela competição continental, jogou apenas 11 minutos de uma partida contra o Cagliari, já no final da temporada. Na temporada 2006-07 foi a vez da Sampdoria fazer parte da história do jogador-ditador líbio. Atuou em apenas uma partida amistosa contra a Spezia. Foi sua última partida como profissional.

Segundo oposicionistas, Saadi também mostrou seu lado déspota em diversas ocasiões esportivas. Relatos afirmam que em 96, na final da Copa da Líbia, após o Al Ahly de Benghazi ter conquistado o título, homens do exército líbio dispararam contra a torcida. Vinte pessoas teriam morrido. A cidade de Benghazi, e mais especificamente o clube, era historicamente oposicionista do regime de Gaddafi, e não são poucos os que acreditam em uma conspiração de Saadi para acabar com a equipe, que teria tido troféus, medalhas, e até parte de sua infra-estrutura destruída sob ordens diretas do jogador e dirigente durante os anos 2000.

Além disso, foi acusado de ter torturado e assassinado o ex-jogador e então comentarista de futebol Bashir al-Riani. Até mesmo rumores sobre sua sexualidade foram levantados. Um ex-jogador do Al Ahly, Reda Thawargi, alegou anos depois ter sido preso por negar as investidas de Saadi. A suposta bissexualidade de Saadi teria enfurecido o líder Muammar, de acordo com diplomatas americanos em documentos revelados pelo Wikileaks.

Mesmo assim, em 2011, comandou as Forças Especiais da Líbia. Após a morte de seu pai, tentou se refugiar no México, mas não conseguiu. Passou três anos no Niger, onde foi capturado em março de 2014. Na ocasião, após a extradição, o governo líbio afirmou que iria “tratar o acusado de acordo com os princípios da justiça e das medidas internacionais que regem o tratamento dos detidos”. Em 2015, um vídeo foi divulgado mostrando Saadi e outros presos sendo torturados. Certamente, não foi o final de carreira que Saadi imaginou para si.


Texto publicado originalmente em 14 de fevereiro de 2016 no blog Escrevendo Futebol.

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