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Reportagem

Da Guerra do Afeganistão ao sucesso no mundo da bola

A história do Afeganistão, país encravado na Ásia Central, é repleta de guerras e disputas por um pedaço de terra habitado em sua maior parte por um povo que parece viver numa época medieval. A pobreza, a miséria, e uma cultura fortemente ligada à religião, fazem do país um contraponto extremo à vida ocidental. A derrubada do Talibã, após a invasão estadunidense no início do século XXI, tirou o poder dos extremistas islâmicos, mas códigos religiosos rígidos seguem pautando a vida de grande parte da população de mais de 30 milhões de pessoas, de maioria pachtun, grupo étnico islâmico. Violações aos direitos humanos seguem sendo relatadas ano a ano pela Anistia Internacional, tanto provenientes de forças estatais como de grupos insurgentes. A violência contra a mulher, estupros e casamentos forçados também fazem parte de uma dura rotina.

Apesar do cenário geral caótico, há exceções, e o futebol aparece como um caminho de esperança, de transformação social. Praticamente inexistente no século XX, o futebol passou a ser olhado com carinho no país. A seleção nacional ganhou seu primeiro título na história e o campeonato local se organizou com base em um reality show, atingindo todas as províncias do país. A situação é melhor para quem vive longe do país, especialmente para as mulheres. Refugiados afegãos (estima-se em 2,5 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo na diáspora afegã) encontram no esporte um novo rumo. Noor Husin, Khalida Popal e Nadia Nadim são exemplos da mudança, ainda que tímida, que a sociedade afegã vem passando. Atletas, seres humanos, que se livraram das amarras do tribalismo e da guerra para conquistar o mundo com uma bola nos pés.


Quando Noor Husin nasceu em 1997, Mazar Sarif, a quarta maior cidade do Afeganistão, estava prestes a ser tomada pelo exército Talibã. Quatro anos depois, os Estados Unidos invadem o país dispostos a se vingar pelo Atentado de 11 de setembro de 2001. A cidade de Mazar se torna ponto estratégico na guerra. Com apenas cinco anos, Husin e sua família (pai, mãe e irmão) fugiram das agruras do conflito rumo à Inglaterra.

Apaixonado por futebol, o garoto passou a jogar em equipes de bairro até conseguir um lugar no Reading, quando tinha 11 anos. Ficou no clube até se profissionalizar e passou pelo amador Hemel Hempstead antes de assinar pelo Crystal Palace. Depois de um empréstimo ao Accrington Stanley, o rapaz, hoje com 21 anos, foi contratado na última temporada pelo Notts County, da quarta divisão inglesa, o clube profissional mais antigo do mundo. Husin não conseguiu se estabelecer na equipe titular, mas seu único gol foi escolhido como um dos gols mais bonitos da temporada. Foi o primeiro jogador afegão a jogar e marcar no futebol profissional inglês. “Tenho orgulho disso, espero ser o primeiro também na Championship e na Premier League”, disse o meia, em entrevista à Sky Sports.

Husin entende também que é uma referência aos afegãos, um exemplo para centenas, talvez milhares de crianças. “Há muitos afegãos atuando em um nível decente na Europa. Eu sei que as pessoas me olham como uma inspiração. Se eu puder inspirar e motivar pessoas já é uma grande coisa. Espero que eu possa dar a elas coisas a mais para se sentirem felizes no futuro”.


Ser mulher não é uma tarefa fácil em meio a um mundo tão machista. Se além do machismo, o fundamentalismo religioso também é um percalço, a dificuldade provavelmente se torna maior. Preconceito, perseguições, insultos… são inúmeros os obstáculos para garotas, principalmente as que querem viver do futebol. Khalida Popal e Nadia Nadim sabem bem o que é isso.

Especialmente a primeira. Khalida enfrentou toda uma sociedade doente para viver o sonho de jogar futebol. Nascida em 1987, filha de professora, conheceu o futebol cedo através de sua mãe. No auge do domínio Talibã, que proibiu a prática de esportes pelas mulheres, Popal se reunia com amigas e jogava futebol, longe dos olhos de todos. Após a queda da Sharia, o futebol voltou a ser permitido às mulheres, mas o preconceito e a perseguição continuaram o mesmo de antes. Ainda assim, Popal atuou pela seleção nacional a partir de 2007, foi capitã da equipe e atuou em diversas funções dentro da Associação Afegã de Futebol, inclusive como treinadora das equipes sub-15 e sub-17. Porém, as constantes ameaças de morte a fizeram pedir asilo político na Dinamarca, em 2011. “Eu sabia que se ficasse no Afeganistão, minha vida estaria em risco”, contou em entrevista ao jornal inglês The Independent. Hoje, aos 31 anos, Popal é uma voz ativa na luta por igualdade de direitos. “Isto é o que eu faço, esta é minha personalidade: a de defender a mulher, defender minha equipe, defender meu gênero”.

Assim como Nadia Nadim, que sofreu diretamente a violência exercida pelo regime Talibã. Filha de um militar afegão, Nadia se viu sozinha com sua mãe e suas quatro irmãs em 2000. O pai da hoje jogadora foi executado pelos talibãs. “Você não podia fazer coisas básicas, como ir à escola, trabalhar, sair sem estar com um homem”, disse Nadia em entrevista à UEFA. Com apenas 12 anos, a garota fugiu com sua família para a Europa e acabou chegando à Dinamarca, onde conheceu o futebol. “Fiquei espantada: Uau! Existem garotas jogando futebol de verdade!”.

Naturalizada dinamarquesa, se tornou em uma das principais atletas do país, hoje atuando no Manchester City, na reformulada liga das mulheres na Inglaterra. Em 2017 ficou com o vice-campeonato europeu pela seleção dinamarquesa. “Eu amo isso, me faz feliz, e não importa o quanto estressada estou ou o que esteja acontecendo. Basta pisar no campo e ver a bola que tudo parece desaparecer”.

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