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Especial: Copa João Havelange

Nós, brasileiros, estamos acostumados às bizarrices que a cartolagem do futebol nacional criou ao longo dos anos. Mas talvez, nada seja mais surpreendente e inexplicável do que a Copa João Havelange. É difícil de entender até mesmo para quem viveu de perto aquela competição, que oficialmente, foi o Campeonato Brasileiro de 2000. Mas é curioso como consequências possuem causas tão distantes entre si. Tudo começou em 1999, com a adesão absurda do sistema de promédio para o rebaixamento daquele ano. E você vai conhecer todos os detalhes da Copa João Havelange, nesta reportagem especial.

O promédio brasuca

Se há algo que jamais teve sentido algum em se realizar num campeonato com acesso e descenso, é o chamado promédio. Utilizado em alguns países latinos, é muito difundido na Argentina. O promédio argentino consiste em somar todos os pontos das últimas três temporadas e dividi-los pelo número de jogos que a equipe fez nestes campeonatos. Os clubes com as piores médias desse índice são rebaixados diretamente. Esse método é usualmente associado à proteção dos clubes grandes, embora recentemente tenhamos visto casos como o do River Plate. Em 99, essa ideia passou a vigorar no Brasileirão.

Só para termos uma ideia de quão estranho é esse tipo de regulamento, o Gama, um dos rebaixados, terminou a competição em 15º, com 26 pontos, 9 acima do lanterna, Sport, que NÃO caiu. Mas vamos explicar o método utilizado pela CBF. Como o número de jogos da primeira fase diminuiu de 23, do ano anterior, para 21 partidas, a fórmula para o cálculo era a seguinte:

Média de pontos = pontuação de 1998 ÷ 23 (jogos) + pontuação de 1999 ÷ 21 (jogos) ÷ 2 (temporadas)

Sim, amigos. Não bastava bons jogadores e um grande treinador. Era preciso ter um matemático na comissão técnica da equipe. A fórmula mudava para as equipes recém-promovidas (Gama e Botafogo-SP):

Média de pontos = pontuação de 1999 ÷ 21 (jogos)

Ao término da primeira fase, em novembro, as médias deveriam estar assim (do menor para o maior):

1 – Botafogo-SP: 1,000
2 – Juventude: 1,089
3 – Paraná: 1,093
4 – Botafogo-RJ: 1,178
5 – Internacional: 1,219
6 – Gama: 1,238

Ou seja, Botafogo-SP, Juventude, Paraná e Botafogo-RJ estariam rebaixados para a Série B de 2000. Isso, se em outubro, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva não tivesse tomado uma polêmica decisão que mudaria não só os rumos do campeonato daquele ano, como de todo o futebol brasileiro.

O caso Sandro Hiroshi

Reprodução/Placar

No Campeonato Paulista de 99, um jovem atacante despontava para uma promissora carreira. Era Sandro Hiroshi, um tocantinense de traços orientais, que na ocasião, era jogador do Rio Branco de Americana. Na sequência do estadual, foi contratado pelo São Paulo para formar dupla de ataque com França. Foi a partir desta transferência, que os problemas começaram a aparecer. Sandro foi contratado pelo Rio Branco vindo do Tocantinópolis. Com sua ida para o tricolor paulista, o time tocantinense queria parte no valor da negociação, como clube formador. Porém, o Rio Branco alegava ter assinado com o jogador ainda como juvenil. O próprio Sandro Hiroshi afirmou em entrevista à revista Placar que jamais teve vínculo algum com o Tocantinópolis, apesar de ter jogado alguns campeonatos de base. Afirmou que sequer treinava no clube. A batalha judicial fez a CBF bloquear o passe do jogador, não permitindo que ele se transferisse, mas dando o aval para que o mesmo continuasse a jogar, assim como a Federação Paulista de Futebol.

No dia 4 de agosto, na 3 ª rodada do Brasileirão, o São Paulo encaçapou o Botafogo-RJ por 6 a 1. Dias depois, o clube carioca entrou com um pedido de anulação da partida, alegando que o bloqueio tornava o jogador irregular (algo contraditório, afinal, a própria CBF já havia permitido a atuação do atleta). Entretanto, o caso foi julgado pela Justiça Desportiva apenas em 19 de outubro. A decisão da Comissão Disciplinar foi favorável ao Glorioso, atribuindo-lhe os três pontos daquela partida, e retirando o mesmo número de pontos do São Paulo. O tricolor ainda tentou recorrer alegando que outros atletas de outras equipes também estavam com o passe bloqueado, e jogando normalmente. O argumento foi ignorado e a decisão foi mantida.

Depois, o Internacional, com chances reais de rebaixamento, viu no imbróglio uma brecha, e também buscou recuperar os pontos do empate com o São Paulo. E conseguiu. Ganhou 2 pontos sem nenhuma justificativa. Curioso notar que Sandro Hiroshi atuou por 16 partidas durante o torneio (e marcou apenas um gol, justamente contra o Botafogo). Se o São Paulo fosse punido de maneira equivalente aos dois primeiros casos, fatalmente terminaria rebaixado. Caso o tricolor não tivesse sido julgado, e seus pontos não tivessem sido transferidos, o Botafogo teria sido rebaixado no lugar do Gama e o Inter seria mantido na elite. Em uma segunda hipótese, se apenas o Glorioso tivesse ganho estes pontos na justiça, quem sofreria o rebaixamento era o Internacional.

No dia 3 de novembro, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva da CBF condena em definitivo o São Paulo pela escalação do atacante Sandro Hiroshi na vitória sobre o Botafogo-RJ por 6 a 1, e dá os pontos do jogo ao Botafogo, o que causa o rebaixamento do Gama. Antes da decisão, os jogadores do São Paulo chegaram a ensaiar uma greve caso Hiroshi fosse julgado. “Se um presidente que roubou nosso país pode voltar a disputar eleições, porque o Sandro não pode ser perdoado”, questionou Raí. Carlos Augusto Montenegro, dirigente do Botafogo, deixou claro como o que acontece dentro de campo no Brasil, pouco vale. “Perdemos no campo de 6, mas aqui ganhamos de 7”, em referência aos sete votos a favor do clube carioca.

Com a decisão do STJD, o promédio ficou assim:

1 – Botafogo/SP: 1,000
2 – Juventude: 1,089
3 – Paraná: 1,093
4 – Gama: 1,238
5 – Botafogo-RJ: 1,249
6 – Internacional: 1,267

Como era de se esperar, o caso envolveu grande atuação da imprensa. E enquanto se investigava as transferências de Sandro Hiroshi, a Folha de São Paulo publicou uma reportagem em que denunciava que o atacante havia adulterado sua idade, e que jogava desde 1994 com documentação falsa. O popular “gato”. Sandro nasceu no dia 19 de novembro de 1979, e quando tinha apenas 14 anos, teve a documentação alterada em 42 dias, modificando o ano de nascimento para 1980. Como o julgamento do caso do bloqueio do passe e a denúncia de adulteração de idade apareceram praticamente juntas, criou-se o mito de que o “gato” teria sido preponderante no desfecho do processo judicial. O atacante foi punido com 180 dias de suspensão, e posteriormente julgado pela Justiça por falsidade ideológica.

O caso teve uma repercussão tão grande, que atravessou fronteiras. Pela Copa Mercosul, o São Paulo empatou com o Boca Juniors por 1 a 1 em 18 setembro de 99. Hiroshi estava no banco durante a partida do Morumbi, e o clube xeneize, eliminado, buscou encontrar irregularidades em outras equipes para tentar uma vaga na fase seguinte da competição, no tapetão. O Boca Juniors terminou a fase de classificação do torneio sul-americano com dez pontos, na segunda colocação do Grupo C, empatado com o Corinthians, do Grupo B, como terceiro melhor 2º colocado. Ambos tinham o mesmo número de vitórias e saldo de gols. O desempate foi decidido em um sorteio na sede da Conmebol, e o Timão levou a melhor. A CBF enviou para a entidade sul-americana todos os documentos do atleta, garantindo sua regularidade, explicitando a total incoerência nas decisões tomadas durante o Brasileirão. Lembre-se: segundo a documentação apresentada pelo Botafogo, Hiroshi estaria irregular entre os dias 13 de julho e 18 de outubro!

Revoltado, e com certa razão, o Gama resolve melar tudo. Com ligações importantes com membros da política, o clube candango decidiu enfrentar de peito aberto a CBF. No final de novembro, o PFL-DF (atual DEM) e o Sindicato dos Técnicos do DF, representados pelo então senador pelo PSDB, José Roberto Arruda, entram na Justiça Comum, que concede liminar garantindo o Gama na série A. Esse foi o pontapé de um dos maiores imbróglios jurídicos da história do esporte.

No início de fevereiro de 2000, o Tribunal Regional Federal-DF nega recurso do Botafogo para cassar a liminar que mantinha o Gama na Série A. No final do mês, foi a vez da CBF ter recurso negado pela segunda Turma do TRF-DF, desta vez pela liminar que garantia o Gama na Copa do Brasil. A entidade máxima do futebol brasileiro seguiu sofrendo derrotas nos tribunais. Em março, o Tribunal Federal de Recursos do DF rejeita recursos da CBF contra as duas liminares anteriormente descritas.

Com um desfecho imprevisível, os times grandes do país começam a se articular. No dia 8 de maio, o Clube dos 13 define que iria criar uma liga, sem o Gama. A ideia era assumir de vez o controle do futebol brasileiro. A CBF sinaliza apoio. Na época, o presidente do Gama, Agrício Braga Filho declarou em entrevista: “Estamos em contato com a CBF, a Federação Carioca e o Botafogo em busca do consenso. Nossa proposta é um Brasileiro com 21 clubes”. No dia 31, nova derrota da CBF, com recurso negado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Nisso, já haviam se passados 6 meses do ano, e nada havia sido resolvido. A FIFA decidiu intervir, inclusive ameaçando a CBF de suspensão em caso de não resolução do problema. Mas a Justiça ainda não tinha julgado o caso em todas as instâncias, o que impedia a entidade de realizar o Campeonato Nacional de 2000. A solução encontrada pelo então presidente Ricardo Teixeira, foi entrar em acordo com o Clube dos 13. Dessa maneira, o grupo dos grandes clubes brasileiros organizaria um torneio com a chancela da CBF chamado Copa João Havelange em homenagem ao ex-presidente da FIFA. Isso, claro, sem o Gama. A FIFA havia punido o Gama no fim de junho, suspendendo o clube, por não aceitar que os clubes ingressem na Justiça Comum. No final das contas, a entidade máxima do futebol recuou. Mas o clube brasiliense insistiu em lutar por seu direito de jogar, e em 10 de julho foi incluído via liminar no novo Brasileirão. CBF e Clube dos 13 tentaram reverter a decisão em novo recurso no TRF-DF, mas não obtiveram êxito.

A Copa João Havelange

Finalmente, no dia 20 de julho de 2000, CBF, Clube dos 13 e Gama entram em um acordo e definem que a primeira divisão nacional contaria com 25 clubes, incluindo o Gama, o Fluminense (campeão da série C), o Bahia e o América-MG (ambos eliminados da série B nacional do ano anterior) e o Juventude (rebaixado à série B em 99). Assim como na famosa Copa União de 87, foi feito um acordo elitista, direcionado e sem nenhum critério técnico, o que obviamente desencadearia uma nova guerra de liminares.

Assim, ficou decidido que as três divisões nacionais seriam unificadas em um único torneio, dividida em quatro módulos diferentes. Cada módulo tinha um regulamento e número de participantes diferente entre si. Entretanto, todos os clubes de todos os módulos tinham chance de se tornarem campeões nacionais, graças ao cruzamento destes módulos na fase final. É importante destacar que oficialmente não existiram séries B e C no ano de 2000, embora as divisões da pirâmide do ano de 99 tenha definido indiretamente os participantes de 2000 e o resultado final de 2000 tenha sido determinante na definição do Campeonato Brasileiro de 2001, já restabelecido. Ou seja, não é absurdo nenhum que Paraná Clube e Malutrom sejam considerados campeões da série B e C do Brasileirão, respectivamente, mesmo que, oficialmente, não seja assim.

O Módulo Azul seria o equivalente a Série A e foi formado pelos 20 clubes que ficariam na primeira divisão do ano anterior, e os cinco clubes repescados, como citado anteriormente: Gama, Fluminense, Bahia, América-MG e Juventude. O Módulo equivalente a Série B foi formado por 36 clubes, os 15 que deveriam estar na série B normalmente, mais outras 21 equipes convidadas com o aval da CBF. A terceira divisão nacional foi dividida em duas. No Módulo Verde eram 28 clubes, e no Módulo Branco outros 27.

Os cruzamentos

Qualquer semelhança com a Copa União de 87 não é mera coincidência. O Clube dos 13, que naquela ocasião era permanentemente contra o cruzamento entre os módulos, em 2000 se mostrou ser tão desorganizada quanto a CBF. Sem ter o poder de definir os acessos e descensos, foi instituído que todos os times dos quatro módulos tinham chances de serem campeões brasileiros de 2000, mesmo que na teoria, estivessem em divisões diferentes, algo corroborado na distribuição de vagas realizada para o Brasileirão de 2001 (como você verá ainda neste texto).

Para a fase final, ficou definido que disputariam os 12 primeiros do Módulo Azul, os 3 primeiros do Módulo Amarelo (Paraná, São Caetano e Remo), e o campeão do Módulo Verde e Branco (Malutrom). Já nas oitavas, Malutrom e Remo foram eliminados por Cruzeiro e Sport, respectivamente. Enquanto o Paraná passava pelo Goiás e o Azulão, comandado por Jair Picerni, surpreendia o Fluminense. “É óbvio que todo mundo disputa pensando em chegar a uma final. Mas a gente só foi crer que podia chegar quando a gente eliminou o Fluminense no primeiro mata-mata. Foi aí que a gente começou a fomentar aquela situação de poder chegar a final do Campeonato Brasileiro” disse o atacante Adhemar, com exclusividade para a nossa reportagem. O jogador desembarcou em São Caetano do Sul no final de 96, viu o time quase cair para a quarta divisão paulista, e foi um dos líderes da equipe, ajudando o clube a sair da série A-3 do Campeonato Paulista para a elite do Brasileirão.

Nas quartas-de-final, o tricolor da Vila Capanema caiu diante do Vasco em duas partidas muito polêmicas. Do outro lado da chave, o São Caetano eliminava mais um gigante do futebol brasileiro, o Palmeiras, em duas partidas eletrizantes e com muitos gols. Nas semifinais, o Vasco, liderado pela dupla de ataque formada por Romário e Euller, passou pelo Cruzeiro, a equipe com a melhor campanha até então. E olha que não faltou turbulência nos bastidores do Vasco. Após o empate no jogo de ida, o técnico Oswaldo de Oliveira deu folga ao elenco. Ainda nos vestiários do Mineirão, Eurico contraria o treinador e muda a programação, alegando que a folga atrapalharia a concentração do time para a final da Copa Mercosul diante do Palmeiras, dali a quatro dias. Nesse cabo de guerra, estourou o lado mais frágil. Oswaldo foi demitido, e Joel Santana assumiu a nau vascaína, garantindo o título da competição continental e a vaga na final do Brasileirão.

No meio de tudo isso, o São Caetano já tinha se tornado o novo xodó do torcedor brasileiro. Ninguém esperava uma nova surpresa, mas Adhemar estava endiabrado, e nos dois jogos eliminatórios diante do Grêmio, marcou três gols essenciais para a classificação de uma das maiores zebras da história do futebol nacional. “A cumplicidade que cada jogador tinha com seu companheiro… Éramos uma família. às vezes íamos em três ou quatro famílias pro shopping, pessoal ia brincar com os filhos, as mulheres iam passear. E isso fez com que cada um se doasse um pouquinho mais dentro de campo”, respondeu Adhemar ao ser perguntado sobre o segredo daquele elenco do São Caetano.

A final emocionante e trágica

Os jogos da final ficaram marcados para os dias 27 e 30 de dezembro. De um lado, um Golias do futebol nacional. Do outro, um surpreendente Davi. O jogo de ida aconteceu no Palestra Itália, estádio do Palmeiras. Sem favoritismo, o São Caetano aproveitou o desfalque de Juninho Pernambucano e se lançou ao ataque. Wagner pela esquerda toca para dentro da área, e César manda um forte chute de canhota para abrir a contagem. A pressão seguiu e Hélton ia segurando o time do São Caetano do jeito que dava. Mas aos 27 minutos, a bola chega nos pés de ninguém menos que Romário. Dentro da área. Ali, fica difícil, e o Baixinho deixa tudo igual. Na segunda etapa, o Azulão atacou o Vasco de tudo que é maneira. Foi parado pela trave, por Hélton em noite iluminada, e por um pênalti de Odvan em Wagner, não marcado por Carlos Eugênio Simon.

“Foram várias chances, bola no travessão, bola na trave, bola que passou raspando, bola que o Hélton pegou. Naquela partida eu fiz o meu melhor. A gente sabia que o Vasco tinha uma excelente equipe. Pra resumir, o resultado não foi justo pelo número de finalizações que tivemos, mas o Vasco tinha o Romário, né?”, destacou Adhemar.

Para o jogo da volta, em um belo e ensolarado sábado, o Vasco tinha a vantagem do empate sem gols. E o Azulão, que não tinha nada a perder partiu pra cima do Gigante da Colina. Em 23 minutos, o cenário era favorável ao pequeno clube do ABC Paulista, que já havia carimbado a trave com Adhemar. Romário, sentindo uma fisgada na coxa, deixa o campo para a entrada de Viola. Foi então que a torcida, de maneira literal, veio abaixo. Em uma pequena discussão na arquibancada de São Januário superlotado, o alambrado cedeu, e centenas de torcedores ficaram amontoados à beira do gramado. Mais de 150 feridos, com três deles em estado grave.

Alexandre Battibugli/Placar

“Eu pensei que fosse algo mais suave. Não deu pra ver. A pilha de gente era muito grande. Uma imagem que me marcou muito foi de um pai carregando uma menina, e a menina estava com as costas perfurada e jorrava muito sangue”, lembra Adhemar. Enquanto ambulâncias e um helicóptero do Corpo de Bombeiros retiravam as vítimas, discutia-se em campo o prosseguimento da partida. Os jogadores aguardavam o desfecho, atônitos. Eurico Miranda fazia questão de tentar “limpar” o campo de jogo, e declarava a quem quisesse ouvir: “Vamos recomeçar o jogo”. O árbitro Oscar Roberto Godói aguardava para tomar a decisão mais sensata. O comando da polícia concordava com o dirigente e então deputado federal. Para os homens da lei, o cancelamento da partida poderia gerar consequências ainda mais trágicas, com uma possível revolta da torcida. Entretanto, o governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, ligou pessoalmente ao comandante dos Bombeiros, o coronel Paulo Gomes, e determinou o fim da partida. “É melhor adiar um jogo do que perder uma vida. Imagine uma torcida enfurecida caso o São Caetano fizesse um gol?”, declarou o político. Adhemar concordou com o ex-governador e reforçou que encerrar a partida foi a decisão correta: “As duas equipes estariam muito erradas em tentar continuar aquela partida. Sei lá, de repente poderíamos ter ganho ou ter perdido, mas não era o momento pra continuar uma partida”.

Indignado, Eurico vociferava contra o governador que chegava de helicóptero ao estádio para assegurar que tudo aconteceria de acordo com sua decisão. E chegou ao ápice da falta de responsabilidade ao ordenar que os jogadores voltassem a campo, pegassem o troféu e fizessem a mais vergonhosa volta olímpica possível. “O Vasco é o legítimo campeão! Tem todos os méritos. Como o 0 a 0 era nosso e o jogo acabou, nada mais natural que a volta olímpica”. Sem a mesma tarimba de dirigente de time grande, o vice-presidente do São Caetano, Luiz de Paula, comentava resignado: “Se ele diz que o Vasco é campeão, o São Caetano se contenta com o vice. Vamos comemorar do mesmo jeito”. O presidente da Federação Carioca, o folclórico Caixa D’Água, considerava a decisão mais plausível dividir o título de campeão entre as duas equipes. Talvez fosse o final mais coerente com o desastre que foi a Copa João Havelange do começo ao fim. Enquanto isso, nenhum dirigente do Clube dos 13, a entidade organizadora do torneio, deu as caras.

Alexandre Battibugli/Revista Placar

Romário 100% contra um São Caetano meia-bomba

Após o desastre, era hora de decidir o rumo do campeonato. Rapidamente, se espalhou a ideia de dividir o título entre as duas agremiações. Foi preciso que Luiz Zveiter, presidente do STJD na época (AQUELE que anulou 11 jogos no Brasileirão de 2005) assumisse a bronca. Zveiter definiu que uma nova partida seria realizada, dando entrevistas para toda a imprensa. Em suas palavras, “forçamos a decisão que consideramos a mais justa”, acatada prontamente pelo Clube dos 13.

Definida a data da final (18 de janeiro), o São Caetano precisava correr para remontar a equipe. Vários jogadores já tinham fechado com outros times ou estavam sem contrato. A presença do craque Adhemar, acertado com o Stuttgart, da Alemanha, foi confirmada poucos dias antes do jogo. “Eu já tinha ido pra Alemanha, já tinha acertado toda minha transferência pro Stuttgart. Alguns outros já tinham sido negociados. Então foi uma partida diferenciada, com jogadores já pensando nos outros contratos. E é diferente. O cara fala que entra em campo e tá focado na partida. Mas passou a semana inteira discutindo um contrato e na hora do jogo você tem que estar focado. Foi uma coisa que atrapalhou muito. Mas faz parte, isso é o futebol brasileiro e a gente tem de aceitar”. O zagueiro Daniel e os reservas Zinho e Leto não tinham contrato até a véspera da finalíssima. Na verdade, não se sabe se foi efetivado algum contrato realmente. Claudecir possuía um pré-contrato com o Palmeiras desde outubro de 2000. Japinha, já negociado com o Bahia, chegou a dizer que o time do ABC era passado. “Disse aquilo antes da decisão do STJD pela realização do terceiro jogo. Não sabia que teria que jogar de novo”.

Toda a partida foi realizada às pressas. O Maracanã, em meio a uma de suas muitas reformas, precisou ter a grama plantada a poucos dias da final, ficando rala e cheia de areia. E após a justificável cobertura da imprensa, em especial da Globo, que tratava Eurico como um verdadeiro ditador, o dirigente preparou uma das suas. Sem nenhuma autorização, estampou a logo do SBT, na época principal rival da emissora carioca, na frente e nas costas da camisa vascaína. Segundo o mandatário, tudo não passou de uma homenagem a Sílvio Santos. Ao ser informado do ocorrido, Sílvio, que estava nos EUA pediu: “guarda essa fita que eu quero ver quando chegar”.

Com a bola rolando, Juninho Pernambucano colocou o Vasco na frente aos 30 minutos com um chute no ângulo, após receber lindo passe de Romário. Seis minutos depois, Adãozinho arriscou de longe e empatou o jogo para o valente São Caetano. Mas ainda na primeira etapa, nova jogada coletiva do Vasco, que acaba em passe de Juninho Paulista e gol de Jorginho Paulista. No fim do primeiro tempo, Adhemar alertava: “A nossa condição física não é das melhores. Temos que tocar mais a bola e sair conscientemente para o contra-ataque”.

Mas não houve reação do Azulão. Aos 8 da segunda etapa, Juninho Paulista encontra Romário na área. Ele vence o zagueiro Serginho e define a partida, e enfim, conquista seu primeiro título brasileiro. O consolo do Azulão foi a calorosa recepção em São Caetano do Sul feita por mais de 7 mil torcedores, que acompanharam a equipe em carreata até o estádio Anacleto Campanella.

A irregularidade do Vasco

Em 25 de julho de 2000, ainda antes do início da competição, o Clube dos 13 anunciou a criação de um Tribunal de Penas para o julgamento de casos de indisciplina. Entretanto, esse órgão foi extinto por pressão do STJD, que considerava que a entidade não tinha a competência para julgar esses casos. Além de todos os problemas flagrantes da final, já descritos anteriormente, a Folha de São Paulo, em reportagem assinada por Fernando Mello no dia 21 de março de 2001, descobriu que o Clube dos 13 encobriu uma irregularidade do lateral-esquerdo Jorginho Paulista, do Vasco da Gama.

O jogador vascaíno atuou em 4 partidas, contra Gama, Goiás, Flamengo e Coritiba, sem estar regularizado, pois a Udinese, clube anterior do lateral, ainda não havia liberado a documentação do jogador, que na época, sofria uma acusação por uso de passaporte falso. Jorginho ainda atuou outras 10 partidas e marcou um dos gols do Vasco na final contra o São Caetano.

Em entrevista à Folha, o presidente do Clube dos 13, Fábio Koff admitiu que a entidade tinha conhecimento da irregularidade: “O que soube, por informações extraoficiais, é que ele jogou algumas partidas sem estar devidamente regularizado. Mas não sei por quanto tempo isso durou e, se no próprio curso da competição, o Vasco não regularizou sua situação. Não tomamos nenhuma atitude porque não éramos órgão judicante, isso não era competência nossa. Deixamos de sê-lo com a exclusão do Comitê de Penas. Toda a postulação deveria ter sido encaminhada ao TJD. Não éramos nem instância inferior, só podíamos aplicar a suspensão automática em caso de cartões amarelos ou vermelhos. O que recebemos foi um ofício de pessoa física do advogado Paulo Goyaz (vice-presidente do Gama) pedindo a punição ao Vasco também por ofício. Não houve recurso formal de um clube a nós. Houve solicitação de informações, uma consulta. Respondi que o acesso a esta informação deveria ser obtido na CBF. Encaminhamos o caso ao nosso Departamento Jurídico, mas entendemos que o prazo para reclamar, de cinco dias úteis após o jogo, já estava esgotado”.

Mas por qual razão outros clubes interessados em uma punição ao Vasco recuariam? Segundo a Folha, por medo de Eurico Miranda, vice-presidente do Clube dos 13, e curiosamente, também um dos pivôs da polêmica da Copa União de 87.

Quem foi o artilheiro?

Em qualquer relato histórico sobre a história do Campeonato Brasileiro, existirão dezenas, ou até centenas de asteriscos. Um deles é em relação ao artilheiro da Copa João Havelange. Parte da imprensa considera apenas os números do Módulo Azul, conferindo a Magno Alves do Fluminense, Dill do Goiás e Romário do Vasco, todos com 20 gols, o título de artilheiro do Brasileirão de 2000. Oficialmente, Adhemar, do São Caetano, é o grande artilheiro por ter marcado 22 gols durante toda a Copa João Havelange – 15 no Módulo Amarelo e incríveis 7 gols na fase final. Porém, a CBF jamais premiou o jogador. “Não ganhei nada! Foi tudo muito conturbado! Não me deram troféu. Eu sou o artilheiro do asterisco. Todo ano que começa o Campeonato Brasileiro meu nome fica lá, aí colocam o Romário, o Dill e o Magno com 20 gols. Aí eu vejo assim: puxa, era tão difícil fazer gol no módulo amarelo, aí a gente passa pro módulo azul e minha média aumentou. A CBF não me deu nem um papelzinho. Aliás, eu gostaria de ser reconhecido nem que fosse com um certificado”.

Os beneficiados e os prejudicados: as consequências para 2001
                                                                                                                     
Em 2001, o futebol brasileiro voltou para as mãos da CBF. O Campeonato Brasileiro começou praticamente do zero, com diversas distorções, apesar de algumas decisões terem sido tomadas através do critério técnico, mesmo que isso não tenha acontecido de forma oficial. Na Série A, foram definidos 28 times. Os 25 que disputaram o Módulo Azul (e isso inclui Fluminense, Bahia, América-MG e Juventude), somados ao Paraná e São Caetano (campeão e vice do Módulo Amarelo) e o Botafogo de Ribeirão Preto, um dos rebaixados no Brasileiro de 99, junto com Gama, Juventude e Paraná Clube. Portanto, na prática, Paraná e São Caetano “subiram de divisão” no campo. O Botafogo-SP acabou rebaixado ao Módulo Amarelo mas foi repescado, assim como o Juventude, que sequer teve o rebaixamento concretizado, e o Fluminense, que passou da Série C para a A sem disputar a segunda divisão.

Para a disputa da Série B, também houve confusão e privilégios. O tradicional Nacional de Manaus foi convidado mesmo tendo sido um dos piores times da terceira divisão de 99 e feito péssima campanha na João Havelange, graças ao lobby do senador Gilberto Mestrinho (PMDB-AM). O mesmo ocorreu com a Anapolina, que contou com a ajuda do senador Maguito Vilela (PMDB-GO). O Malutrom foi convidado pelo título no Módulo Verde e Branco. O Brasil de Pelotas, deixado de fora, ainda tentou melar o torneio, mas teve liminar cassada, já com o torneio em andamento. O Remo, 3º colocado do Módulo Amarelo e eliminado nas oitavas-de-finais da Copa João Havelange, não recebeu o privilégio de jogar a Série A, e permaneceu na segunda divisão.

O fim da virada de mesa

É sempre necessário tirar boas lições dos erros. E aparentemente, a elite do futebol brasileiro deixou a “virada de mesa” para trás após a Copa João Havelange. Desde 1971, quando foi instituído o Campeonato Brasileiro, jamais um regulamento foi repetido à risca por dois anos consecutivos. A partir de 2003, o Brasileirão passou a ser disputado através do sistema de pontos corridos e não possui mudanças no regulamento desde o ano de 2005, quando se estabeleceu o número atual de 20 clubes.

*Para esta reportagem foram consultados os arquivos do Jornal do Brasil, da Folha de São Paulo e da Revista Placar.

Reportagem: Yuri Casari
Colaboração e revisão: André Carlos Zorzi

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