Categorias
Perfil

John Langenus, um pioneiro da arbitragem

A figura do juiz no futebol foi concebida anos mais tarde da criação do esporte. Ter espaço na mídia em constantes debates acerca da arbitragem, então, era algo muito distante. Mas com o início do profissionalismo no futebol e a criação de grandes torneios, como a Copa do Mundo, esta classe de operários do futebol também começou a ter destaque. E o primeiro grande árbitro da história do futebol foi o belga John Langenus.

E quando falo grande, não é apenas no sentido figurado. Com 1,90m de altura, impunha respeito e era facilmente identificado no campo de jogo. Além de suas roupas, claro, que falarei mais adiante. Langenus nasceu em 8 de dezembro de 1891, em Berchem, na Bélgica. Tentou praticar o esporte, mas não era lá tão habilidoso. E como a maioria dos juízes de futebol até hoje, arbitragem não era sua função principal. Poliglota (falava francês, inglês, alemão, italiano e espanhol), se destacava também como jornalista. Não raramente, escrevia relatos das partidas em que ele mesmo apitava. Era também chefe de gabinete do Governo de Amberes.

Apaixonado pelo futebol, apitou em três Copas do Mundo (30, 34 e 38), e também nos Jogos Olímpicos de 1928. Já aposentando, escreveu o livro Whistling in the World, autobiografia em que conta inúmeras passagens e encontros com grandes personalidades, como Mussolini (que lhe entregou uma foto autografada de si mesmo). Faleceu em 1º de outubro de 1952. Seu domínio de outras línguas foi fundamental para seu sucesso em uma época que os confrontos entre equipes de diferentes países começava a se espalhar. Apitou mais de 80 partidas internacionais entre clubes e seleções, Fez sua estreia como árbitro internacional no dia 25 de fevereiro de 1923, em Paris, na vitória por 3 a 2 da França sobre Luxemburgo.

Na Copa do Mundo de 1930, espantou e encantou a todos com seus trajes curiosos. Camisa, paletó, gravata, calções de golfe e meiões. Elegância e extravagância em harmonia. Dirigiu quatro partidas ao todo. Inclusive a estreia do estádio Centenário, entre Uruguai e Peru, e a grande final entre Argentina e Uruguai. Porém, essa definição foi dada horas antes do jogo. O belga só aceitou o convite quando sentiu que sua integridade estaria intacta, ao exigir um seguro de vida em caso de derrota da seleção local. Perceba a importância de Langenus na história do futebol. Ele foi o homem que conduziu a partida de futebol mais importante da história até aquele momento!

No estádio Centenário, o Uruguai venceu a Argentina por 4 a 2, e após o bicampeonato olímpico, conquistou também o primeiro mundial. Ao encerrar a partida, assustado com a invasão de campo, fugiu direto para o porto e embarcou no navio SS Duilio. Porém, Langenus foi obrigado a ficar mais um dia em Montevidéu, devido a um forte nevoeiro. Entretanto, ele não saiu da embarcação. Mas nada melhor do que ouvir a história de quem a viveu. Em março de 81, Langenus deu o seguinte relato à revista inglesa World Soccer:

“Tivemos três dias de descanso entre as semifinais e a final, e aproveitei para visitar Buenos Aires no dia anterior ao jogo. Foi justamente neste dia que descobri que havia sido resignado para apitar a partida. Mas apenas graças a minha estrela que pude fazê-lo, porque o navio que me levaria de volta para a Europa zarpava às 15 horas, justo quando começaria a partida. Então tive que realizar longa negociação com o capitão e a companhia para que saíssem umas horas mais tarde. Nas ruas de Buenos Aires havia muita euforia pela final. Foram dispostos vários barcos extras para cruzar o Rio da Prata. Inclusive, quando peguei o barco para voltar a Montevidéu, quase sou esmagado! Todos queriam ir ver a final. Já no Uruguai, os inspetores da aduana submeteram os argentinos a minuciosas revistas na busca de armas. Os jornais de ambos os países se dedicaram a uma campanha chauvinista e provocativa. Durante a manhã anterior ao jogo, os dirigentes europeus discutiram as medidas de segurança para proteger o trio de arbitragem, e somente ao meio dia, recebi autorização dos dirigentes da Federação Belga para aceitar a nomeação, ainda que a perspectiva de violência fosse apenas uma tempestade em copo d’água. Tivemos dificuldades na escolha da bola. Cada um dos adversários havia trazido uma bola fabricada de acordo com os critérios de seus países, e os dois queriam jogar com a própria bola. No campo de jogo, com uma moeda, foi decidido qual bola seria usada em cada tempo. Ao finalizar o primeiro tempo, Argentina ganhava de 2 a 1. Mas os uruguaios pensavam que o segundo gol havia sido marcado em posição ilegal. Era o velho problema do impedimento. Tanto o linesman, Cristophe, quanto eu, pensamos que nossa decisão era justa. Quero destacar que apesar do espírito bélico da multidão, nenhum incidente ocorreu, ainda que os locais estivessem tristes e alguns estivessem até chorando. No segundo tempo, nada pôde conter a equipe uruguaia. Viraram para 3 a 2. Depois a trave privou os argentinos do empate, e finalmente Castro selou o 4 a 2. Houve um rugido de aplausos da multidão, as tropas se alinharam, a bandeira foi lentamente hasteada no mastro e o povo começou a cantar seu hino. Da minha parte, desci rapidamente a gigantesca escadaria, entrei no vestiário, me troquei rapidamente de roupa e saí do estádio a todo vapor. Depois se disse que os argentinos não puderam jogar livremente, diante do risco de tomar um tiro e de que a polícia havia me ajudado a escapar. Nada disso é verdade! No navio me dei conta que a pressa para chegar a tempo para embarcar foi em vão. A densa névoa não permitiu que os barcos pudessem sair. Na manhã seguinte, o Duílio saiu em direção a Europa, continente que jamais viu um espetáculo como esse”.

Deixe um comentário