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Reportagem

A invenção do pênalti

Poucos momentos no futebol são tão tensos e emocionantes quanto uma cobrança de pênalti. Quando o jogo se decide numa disputa de penalidades, então, haja coração, como diria aquele famoso narrador. Mas você sabia que o pênalti não fazia parte das primeiras regras do esporte, e que só foi inventado 27 anos depois daquela histórica reunião na Freemason’s Tavern, em que o Football Association foi fundado? E que ainda por cima, o terror dos goleiros foi criado por um… goleiro?

Milford, o berço da penalidade máxima

Milford é um pequeno vilarejo em solo norte-irlandês. Atualmente, o local possui cerca de 300 habitantes. No final do século XIX, a família irlandesa McCrum era uma das mais respeitadas da região, já que seu patriarca, Robert Garmany McCrum era dono da fábrica de tecidos McCrum, Watson e Merver Company, que havia alavancado a economia local. Como muitos pais em melhores condições da época, mandou seu filho William para a renomada Trinity College, de Dublin. Ao retornar para Milford, para trabalhar nos negócios da família, William trouxe consigo a paixão pelo futebol, e passou a jogar como goleiro do Milford FC. Foi ideia dele a criação da Mid-Ulster Cup, disputada até hoje, e conquistada nas duas primeiras edições pelo Milford.

Conhecido por ser um verdadeiro gentleman, William se incomodava com o aumento de infrações no futebol, principalmente em lances que o atacante, pronto para fazer o gol, era impedido por uma atitude antidesportiva. Na época, era marcada apenas uma falta, independente da posição em que a infração fosse cometida. Esse não era um problema apenas desta região. Em 1889, em uma partida da FA Cup em que o Notts County vencia o Stoke City pelo placar de 1 a 0, Hendry, jogador do Notts, salvou um gol certo com a mão nos minutos finais (ao estilo Luisito Suárez, na Copa de 2010). A falta quase em cima da linha do gol, obrigou o time inteiro do Notts a se perfilar formando uma barreira intransponível. Assim que a falta foi batida, a bola foi recuperada pela defesa, e chutada pra longe. O jogo foi encerrado e o Notts County seguiu adiante na competição.

William pensou em uma regra que punisse com maior severidade alguém capaz de tamanha falta de esportividade. Em 1890, foi enviado à International Board, entidade fundada em 1886, responsável por alterações nas regras do futebol, a sugestão do pênalti. Em tradução livre, a ideia era a seguinte: sempre que se derrubar, agarrar ou deliberadamente jogar a bola com a mão, será marcado um tiro livre. Se a falta ocorrer a uma distância de 12 metros da baliza, será ordenado um pênalti. Durante meses, McCrum buscou apoio de diversas entidades, junto de seu amigo irlandês Jack Reid, jogador que inclusive representou a seleção da Irlanda. Até que em 2 de junho de 1891, em uma reunião da International Board em Glasgow, o pênalti foi oficialmente instituído. A partir daí, além da delimitação das linhas laterais e de fundo, foi demarcada a área de pênalti, com um semicírculo na metade da linha vertical ao campo de jogo. Após a marcação da penalidade, o chute poderia ser feito de qualquer ponto dessa linha, sem nenhuma barreira, e o goleiro podia se movimentar em até 6 metros a frente. Apenas 12 anos depois, em 1902, que a grande área como conhecemos hoje foi concebida, com a devida marca da cal, a 11 metros de distância da meta. Com o tempo, a regra do pênalti foi sendo aperfeiçoada.

Em entrevista por e-mail, Stephen McManus, da Milford House Museum, instituição que preserva a história da localidade, nos deu maiores detalhes sobre a preservação do local da criação da penalidade. “O campo em que foi inventado o pênalti em 1890 foi o campo de futebol do vilarejo até 1920. Depois, os jogos passaram a ser disputados num local conhecido como The Holm, um campo próximo à Milford House, a casa de William”. Em 97, após anos de abandono, uma imobiliária decidiu utilizar a área para a construção de imóveis. “Meu pai, Joe McManus, foi um dos líderes que conduziram o salvamento da área. Então, um acordo foi feito, e as casas puderam ser construídas ao redor do campo, e essa área central foi dada a população de Milford. Em 2002, foi aberto no local o The William McCrum Park, onde há um busto do inventor do pênalti”, completou Stephen. A manutenção da memória de William teve ajuda fundamental do ex-jogador Gerry Armstrong, ex-Tottenham e Watford, e que disputou duas Copas do Mundo, a de 82 e 86, pela Irlanda do Norte.

Apesar das homenagens, Stephen acha que William McCrum merece uma atenção maior por seu feito. “Eu penso que deveria ter, e merece, maior reconhecimento. É algo que atrai visitantes e mídia de todo o planeta. Entretanto, o governo local falha ao não compreender a importância da criação do pênalti. O conselho de Armagh (cidade vizinha ao vilarejo) administra o parque mas não o promove de maneira nenhuma. Muitos da equipe do conselho sequer sabem da existência do parque. Apenas agora, em 2015, finalmente o mapa turístico de Armagh indica a área para visitantes, depois de muita insistência de instituições de Milford”.

A vida de William McCrum

William nasceu em 1865, e era um esforçado goleiro. Além de seu pioneirismo já apresentado, defendeu o Milford FC na primeira temporada da liga irlandesa de futebol, sendo um de seus fundadores. A equipe foi derrotada em todas as 14 partidas disputadas, e o camisa 1 tomou 62 gols. Além de comandar a fábrica familiar, foi juiz de paz e dirigente de diversas equipes e entidades esportivas da região.

“É um fenômeno global”, diz Sthephen sobre o legado deixado. “William mudou a história do esporte, porque a regra do pênalti afetou até mesmo outros esportes. E é incrível pensar em quantos jogadores tiveram suas carreiras elevadas ou destruídas pelo pênalti!”. Basta lembrar de personagens como Panenka e Roberto Baggio.

William gastou muito dinheiro em viagens, mulheres e toda aquela coisa que quase todo boleiro gosta. E também era um mão aberta, aplicando seu dinheiro em diversas ações esportivas e comunitárias, e apesar de ter colocado seu nome na história do esporte, William não foi tão bem nos negócios, e a fábrica faliu em 1931. No ano seguinte, em 21 de dezembro, faleceu após ter tido uma convulsão. De acordo com Stephen, a FIFA irá destinar 7 mil libras (algo em torno de pouco mais que 30 mil reais) para a restauração do local em que William e seus familiares estão sepultados. O mínimo, para o homem que revolucionou como poucos o esporte mais popular de todos.


Texto originalmente publicado em 9 de abril de 2015, no blog Escrevendo Futebol.

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