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Jogos históricos

Quando Andorra enfrentou a melhor Seleção do Mundo

O período pré-Copa do Mundo é sempre capaz de nos proporcionar alguns duelos inimagináveis. E em 1998, a Seleção Brasileira realizou diante da seleção de Andorra o último jogo antes da estreia no Mundial, que seria contra a Escócia. A partida ocorreu um dia após o anúncio do corte de Romário, herói do tetra e ao lado de Ronaldo, a principal esperança em busca do penta. A praça esportiva que sediou o encontro foi o antigo estádio do Red Star da França, mesmo local onde Pelé gravou cenas do filme “Fuga para a vitória”. A expectativa da imprensa brasileira e mundial era de uma goleada, e de preferência com show de Ronaldo, então com status de melhor jogador do mundo. Andorra, além de ser um país de tamanho ínfimo encravado na divisa entre França e Espanha, teve sua federação de futebol formada apenas em 94, e disputou seu primeiro jogo oficial em 96, sem jamais ter vencido até aquele momento. Na época, apenas quatro jogadores eram considerados profissionais. Até o uniforme da seleção era improvisado. Acostumados a usar uniformes da marca alemã Reusch, naquele dia, Andorra recebeu um kit de uniformes Nike. 

O treinador de Andorra era o brasileiro Miluir Macedo, de extenso currículo dentro e fora do país, passando por cinco continentes diferentes. No futebol brasileiro, ficou conhecido por levar o Potiguar de Mossoró a seu primeiro título potiguar em 2004 e o Baraúnas às quartas-de-final da Copa do Brasil, eliminando o Vasco nas oitavas, em 2005. Antes de enfrentar o Brasil, Miluir contou que já vinha preparando a mentalidade dos atletas para essa partida. “Eu já vinha conversando com eles sobre esse jogo já há algum tempo. Eles temiam muito, o próprio governo, de que (uma derrota) pegaria mal. A minha ideia foi justamente apagar o medo de enfrentar uma seleção fortíssima, pois nas eliminatórias (para a Eurocopa de 2000), nós iríamos enfrentar França, Ucrânia, Rússia, e ainda Armênia e Islândia”, explicou o comandante.

Para Óscar Sonejee, jogador com mais jogos pela seleção de Andorra (106), aquele jogo diante do Brasil foi inesquecível. “Foi incrível. A partir daquele jogo tudo começou, passamos a acreditar em nós mesmos. Demonstramos que para Andorra não era uma loucura competir internacionalmente”. Nascido em Andorra, o jogador de ascendência indiana destacou sua marca centenária. “No começo a gente não dá muita importância, mas cada vez dou mais valor, e isso me faz olhar pra trás, 19 anos de muitas lutas e batalhas. Um orgulho ser o primeiro nessa estatística”, conta Óscar.

Com a bola rolando, o primeiro gol demorou a sair. Ronaldo, então chamado de Ronaldinho, ficou cara a cara por duas vezes com o goleiro Koldo, que hoje é o treinador de Andorra. Na primeira, Koldo fez boa defesa, e no segundo lance, Ronaldo recebeu belo lançamento de Dunga, mas a bola escapou dos pés do Fenômeno. Aos 25 minutos, depois de uma pixotada da defesa de Andorra, a bola sobrou para Giovanni marcar finalmente. Logo na sequência, o Brasil ampliou após uma jogada rápida. Bebeto lançou Ronaldo pela direita, o camisa 9 tocou de primeira para o meio e Rivaldo esperou o momento certo para mandar para as redes.

Ronaldo até chegou a deixar sua marca, mas teve o gol anulado. Logo depois, Ronaldinho voltou a ter uma chance inacreditável, e Koldo voltou a aparecer com destaque.  No segundo tempo, aos 8 minutos, o gol que fechou a vitória saiu dos pés de Cesar Sampaio que deu um belo lançamento para Cafu, que aplicou um drible da vaca no goleiro antes de finalizar.

Naturalmente, apesar da vitória, a imprensa tratou a atuação do Brasil como muito abaixo do esperado. No Brasil as críticas eram pesadas, especialmente pela falta de efetividade da dupla de ataque Ronaldo e Bebeto, somado ao corte, até hoje polêmico, de Romário. Já para os andorranos, foi uma partida quase perfeita, mesmo não tendo dado um único chute a gol. “Tivemos sorte, é lógico, e nosso goleiro foi muito bem. Mas Andorra era uma equipe muito cumpridora, determinada”, analisa Miluir. A equipe do principado conseguiu anular a Seleção por um bom tempo, e principalmente, não sofreu gols de Ronaldo, o jogador do momento no planeta. “Foi um sonho, o víamos na TV e estávamos vendo ele ali, na nossa frente. Pra mim foi e sempre será o melhor 9 do mundo. Ainda que naquele dia eu tenha sido o responsável por marcar Rivaldo”, disse Óscar.

Na época, Miluir declarou que aquela partida era um divisor de águas para o futebol de Andorra, opinião que ainda mantém. “Depois de enfrentar o Brasil, eu coloquei na cabeça deles de que o que viesse era normal. Pois enfrentar uma Seleção Brasileira com os jogadores que tinha era muito valoroso para o que nós iríamos enfrentar pela frente. Esse jogo com o Brasil foi fundamental para o início de Andorra. Repito, a equipe é modestíssima, mas bem cumpridora, e perdeu o medo. Não ganha, não ganha, mas não leva goleada de dez, como se imaginava no início, que era o grande problema”, disse o treinador.

De lá pra cá, o país já conquistou três vitórias em sua história. “Temos evoluído, embora mais lentamente, comparado a outros países. Os resultados de nossas equipes de base têm sido muito bons, jogamos de igual pra igual com os mais fortes. Nosso futuro depende de nossos jogadores atuarem nas categorias mais altas possível, em nível profissional. Mas por enquanto é difícil, temos apenas duas equipe profissionais”, explica Óscar.

Mas aquele jogo é um dos pontos altos da curta trajetória de Andorra. “Quando saímos de nosso país achavam que íamos perder de 15, 20 a 0. Políticos disseram que Andorra seria o ridículo do mundo. Perdemos de 3 a 0. Foi um ótimo resultado”, disse Miluir à Folha de SP, na época. O zagueiro Toni Lima foi outro que conseguiu resumir bem a importância daqueles 90 minutos. “Poderia morrer hoje que morreria feliz”, afirmou.

Orgulhoso do posto que ocupou, Miluir se lembra com alegria do tempo que viveu no principado. “A satisfação em ter feito o trabalho que fizemos em Andorra é enorme. Fomos pioneiros. Foi uma experiência fenomenal. Só de estar no meio da cúpula europeia. Nós estávamos lá sempre, não só nas competições, mas em reuniões com treinadores organizadas pela FIFA, pela UEFA. Fiquei 17 anos fora do Brasil, e aqui, infelizmente, as pessoas não veem da mesma forma. Treinar uma seleção como Andorra há até quem despreze. Por menor que seja o país, eu estive no meio das grandes seleções europeias”, destaca Miluir.

Confira abaixo um vídeo com os melhores momentos e a ficha técnica da partida:

Brasil 3×0 Andorra
Data: 03/06/1998
Estádio: Stade Bauer “Red Star”, Saint-Ouen-Sur-Seine (França)
Público: aprox. 10 mil pessoas 
Arbitragem: Pascal Garibian (FRA)
Gols: Giovanni aos 25′ e Rivaldo aos 26 do 1º T; Cafu aos 8′ do 2º T.

Brasil: Taffarel (Carlos Germano, 16/2º), Cafu, Aldair (André Cruz, 20/2º), Júnior Baiano e Roberto Carlos (Zé Roberto, 20/2º); César Sampaio, Dunga (Doriva, intervalo), Giovanni (Leonardo, intervalo) e Rivaldo (Denílson, 25/2º); Bebeto e Ronaldo. T: Zagallo.
Andorra: Jesus Koldo, Francisco Ramírez (Jordi Escura, 12/2º), Ángel Martín, Toni Lima e Txema García; Agustí Pol (Rafael Calero, 38/2º), Ildefons Lima, Oscar Sonejee e Jesús Lucendo; Justo Ruiz e Jordi Bazán (Juliá Sánchez, 30/1º). T: Miluir Macedo.


Texto publicado originalmente em 24 de outubro de 2016, o blog Escrevendo Futebol.

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