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Panenka: quando a obra torna-se maior que o artista

Era 20 de junho de 1976. Estádio Marakana, Belgrado. Na sua frente, Sepp Maier, uma muralha em forma de homem. Passar por ele era definir um título inédito para o futebol tchecoeslovaco, que já havia chegado perto do título mundial em 62. A Alemanha era a atual campeã da Copa do Mundo e da Euro, em 72. Seria a coroação da geração mais poderosa da história do país germânico. No tempo normal, 2 a 2 . Svehlik e Dobias haviam colocado a Tchecoeslováquia na frente e Müller e Hölzenbein buscaram o empate. Nas penalidades, já eram 4 cobranças convertidas para a República Tcheca e outras 3 para a Alemanha. Hoeness havia desperdiçado a quarta cobrança, deixando a decisão nos pés de Panenka. O árbitro autoriza a batida. A partir daquele momento, Panenka deixaria de ser apenas mais um ótimo jogador para se transformar em uma lenda.

Antonín Panenka nasceu em 2 de dezembro de 1948. Desde muito cedo, sempre carregava consigo uma companheira: a bola de futebol. Aos 9 anos, entrou na equipe juvenil do Bohemians Praga, clube da vida do maior jogador tcheco depois de Masopust. Em 67, pouco antes da Primavera de Praga, e da consequente invasão soviética, Panenka sobe para a equipe profissional do Bohemians. O Bohemians foi o alvo da dedicação ao futebol de Panenka, sendo jogador, auxiliar técnico e dirigente do clube alviverde.

Com a bola nos pés, o meio-campista era exímio batedor de faltas e tinha nos passes e cruzamentos sua principal habilidade. Defender não era um atributo. Afirmou certa vez que “odiava desarmar”. Foi convocado para a seleção nacional pela primeira vez em 73. Em toda sua carreira, atuou por 59 vezes com a camisa da seleção e marcou 17 gols, sendo o oitavo maior artilheiro da história da Tchecoeslováquia. Nas eliminatórias para a Copa de 74, a República Tcheca foi eliminada no grupo 8, apenas um ponto atrás da Escócia. Na sequência, os tchecos iniciaram a luta para a disputa da Eurocopa. Na época, a principal competição do Velho Continente tinha um formato bastante peculiar. Apenas quatro seleções disputavam a fase final, constituída de semifinal e final em um país-sede. Para chegar a esta fase, as equipes eram distribuídas em grupos, e os melhores classificados disputavam um play-off. Na prática, uma disputa de quartas-de-finais, em ida e volta.

O caminho da Tchecoeslováquia não iniciou bem, sofrendo uma dura derrota para a Inglaterra por 3 a 0, em Londres. Mas já na rodada seguinte, a história começou a mudar, com uma goleada por 4 a 0 diante do Chipre. Panenka brilhou, marcando três gols na partida. Em seguida, goleada ainda mais impressionante: 5 a 0 contra Portugal. No jogo seguinte, vitória sobre os ingleses por 2 a 1. Na ponta da tabela, bastou um empate em Portugal, e nova vitória sobre a frágil equipe do Chipre, para garantir classificação à próxima fase.

Nas quartas-de-final, difícil duelo diante da União Soviética, em uma revanche da Euro de 60, vencida pelos soviéticos, que eliminou a Tchecoeslováquia nas semifinais. Na primeira partida, em Bratislava (atual capital eslovaca), Panenka volta a brilhar marcando o segundo gol da vitória por 2 a 0. No segundo jogo, o empate em 2 a 2 definiu nova classificação.

Já na Iugoslávia, nas semifinais, o adversário era nada menos que a poderosa Holanda, vice-campeã mundial em 74, e adepta do “futebol total”. Em Zagreb, a Tchecoeslováquia desbancou os holandeses por 3 a 1. No tempo normal, 1 a 1, com o tcheco Ondrus marcando o gol que abriu o placar no primeiro tempo, e anotando contra já na segunda etapa. Na prorrogação, Nehoda e Veselý decretaram o resultado final.

Voltamos ao início do texto. Final da Eurocopa. Tchecoeslováquia e Alemanha. Panenka de frente para Maier. O tcheco já havia percebido uma tendência do alemão em cair para o lado esquerdo com antecedência. Com frieza, Panenka fez nada mais do que repetir o que já fazia em treinos no seu clube. Panenka partiu para a corrida um pouco antes da meia lua. “Eu costumava fazer uma longa corrida que me desse tempo para ver o que o goleiro faria e como ele iria reagir. E o fazia rápido, porque é mais difícil para o goleiro ler sua linguagem corporal”. Ao chegar à marca da cal, bateu com um leve toque, firme, por baixo da bola. Maier já havia caído para a esquerda, e a bola foi caindo lentamente para depois da linha de fundo. Explosão de Panenka que pouco pôde correr, logo imobilizado pelos abraços dos companheiros.

Em entrevista para a UEFA, Panenka falou sobre a decisão, o pênalti e sobre Sepp Maier: “Depois de cada treino costumava ficar mais um pouco, juntamente com o nosso goleiro (Zdenek Hruska) treinando a cobrança de penalidades. Apostávamos uma barra de chocolate ou uma cerveja. E vencer ele foi se tornando difícil, pois ele era um goleiro muito bom. Por isso, às vezes antes de durmir, pensava em formas de o bater. Tive a ideia de que se atrasasse o pontapé e em vez disso tocasse a bola por cima, devagar, um goleiro que se atirasse para um dos lados não tinha tempo de voltar atrás, e essa tornou-se a base da minha filosofia”.

“Comecei a testar lentamente e a colocar em prática nos treinos. Como efeito secundário aumentei de peso, já que começava a ganhar as apostas. Comecei a usá-lo em amistosos, em jogos de menor importância, e acabei por aperfeiçoar o chute e usei-o igualmente na primeira divisão. O ponto alto foi quando o utilizei na Euro. Acho que o Sepp Maier não encarou muito bem. Talvez ainda esteja um pouco sentido e talvez ainda não goste sequer de ouvir o meu nome. Nunca foi minha intenção ridicularizá-lo. Não conheço ninguém que seja capaz de brincar com outra pessoa quando a conquista de um europeu está em jogo. Pelo contrário. Bati assim o pênalti porque percebi que era a forma mais fácil de marcar. Uma receita simples”.

Outro fator decisivo, segundo Panenka, foi a união do grupo. Em geral, as equipes da Tchecoeslováquia se dividiam naturalmente em grupos de tchecos e eslovacos. Mas o técnico Vaklav Jezec, eslovaco, e o capitão Tonda Ondrus, tcheco, souberam formar um espírito de equipe. “Quando partimos para a fase final, ninguém esperava sucesso da nossa parte. Mas nós, os jogadores, tínhamos uma opinião diferente, mesmo que também não estivéssemos muito otimistas. Ainda assim, o certo é que possuíamos uma equipe muito forte. A sua composição era impressionante, com individualidades excepcionais. Tínhamos um grande equilíbrio. Possuíamos jogadores que lutavam muito, outros que criavam e outros ainda que finalizavam. A combinação e variedade eram os ideais. Tínhamos excelentes treinadores e em 20 jogos antes da Euro, ninguém nos venceu. Com os dois encontros na fase final, completamos 22 jogos sem perder, o que por si só é um testemunho suficiente da força da nossa equipe”. Ainda segundo Panenka, políticos disseram a ele após o jogo, que se tivesse errado aquele pênalti, poderia ser punido pelo regime comunista a trabalhar por 30 anos na mineração do país.

Após o título continental, a expectativa era que a seleção disputasse a Copa de 78. No mesmo grupo que a eliminatória anterior, ao lado de Escócia e País de Gales, nova decepção. Para 82, o sistema de disputa das eliminatórias expandiu o número de equipes por grupo, classificando as duas melhores equipes. A União Soviética ficou com a primeira vaga, e a Tchecoeslováquia passou em segundo graças ao saldo de gols, empatando em pontos com País de Gales.

Em 80, a Eurocopa assumiu novo formato, com 8 equipes divididas em dois grupos. Panenka novamente foi um dos destaques da equipe que terminou na terceira colocação, vencendo a disputa pelo 3º lugar por 9 a 8 nas penalidades diante da Itália, país-sede do torneio. E como já habitual, Panenka não desperdiçou sua cobrança.

Finalmente participando de uma Copa do Mundo, na Espanha, a esperança era de ao menos avançar de fase. Entretanto, a atuação coletiva do time foi decepcionante. Na estreia, o jogo mais fácil na teoria, se tornou num grande problema. Panenka, de pênalti, abriu o placar diante do Kuwait, que buscou o surpreendente empate na segunda etapa. Na segunda partida, contra a Inglaterra, Panenka não jogou, e viu de fora a derrota por 2 a 0. Mas ainda havia chance de classificação. Uma vitória contra a França bastava. Mas novo empate em 1 a 1 sepultou as esperanças. Panenka deixou sua marca outra vez em cobrança de pênalti.

Em 1981, com o início da flexibilização política do regime comunista, Panenka decide respirar outros ares e se transfere para o Rapid Viena, conquistando duas vezes o campeonato nacional, três vezes a copa nacional e chegando ao vice-campeonato da Taça das Taças, perdida para o Everton. Depois disso, atua por mais duas temporadas pelo St. Pölten (de 85 a 87), antes de jogar em divisões inferiores pelo Slovan Vienna (87-89), Hohenau (89-91) e Kleinwiesendorf (91-93), encerrando sua carreira com 44 anos!

Marcado pelo modo de bater pênaltis, Panenka influenciou centenas de jogadores durante os anos seguintes, que vez ou outra revivem a famosa “cavadinha”. Pirlo, Zidane, Loco Abreu, Totti são alguns dos muitos nomes que se tornaram adeptos deste estilo, que nem sempre é executado com perfeição, como já demonstrado por Maicosuel e Alexandre Pato. “Eu não tenho o costume de rever, ou de lembrar (sobre o pênalti). Mas me faz feliz que os jovens venham me perguntar sobre isso, eles querem saber os detalhes, meu ponto de vista. Fico contente que eu deixei alguma coisa depois de mim, por assim dizer. Sou um prisioneiro deste pênalti. Por um lado, me orgulho muito disso, e me sinto sortudo por ter marcado o gol. Mas aquele pênalti ofuscou toda minha carreira: minhas performances, meus passes, e meus outros gols”.

O modo Panenka de bater pênaltis era tão eficiente, que até mesmo os goleiros que o conheciam de perto falhavam na tentativa de defender. Em maio de 76, pouco antes da final europeia, o Bohemians enfrentou o Dukla. O goleiro Ivo Viktor era companheiro de quarto de Panenka e conhecia seu estilo de cobrança e mesmo assim foi vencido pelo colega. “Você tem que o persuadir com seus olhos, sua corrida, ângulo, corpo, de que você está mirando em um dos cantos”. Diz a lenda que Viktor, inclusive, tentou usar a persuasão para impedir Panenka de cobrar daquela maneira, na decisão de 76. “Eu me vi como um artista, e vi este pênalti como um reflexo da minha personalidade. Eu queria dar aos fãs algo novo para ver. Fazer algo que ninguém esperava. Eu queria que o futebol fosse mais do que simplesmente chutar uma bola”.

Em 2014, Panenka recebeu o Golden Foot, premiação dada a grandes nomes do futebol mundial. Na ocasião, esteve ao lado de outras estrelas, como Andrés Iniesta, Roger Milla, Jean-Marie Pfaff, Ardilles, Nakata, Hakan Sukur e Mia Hamm. No mesmo ano, tentou se eleger senador em seu país, mas não alcançou tal feito.

Atualmente, é o presidente do Bohemians, cargo que ocupa desde 2005, sendo um dos líderes do resgate que o clube sofreu, por conta de problemas que quase decretaram o fim de uma das mais tradicionais equipes tchecas. Campeão tchecoeslovaco em 1983 (sem Panenka), o Bohemians tem alternado entre a primeira e segunda divisão do país. Para encerrar, fique com esta foto sensacional, que mostra que a aparência sisuda, reforçada pelo tradicional bigode, não passa de um disfarce de uma notável irreverência de um dos craques da história do futebol europeu.


Texto publicado originalmente em 26 de março de 2015.

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